Nos contos de João Guimarães Rosa, seus personagens são pessoas à margem. São bêbados, presos, crianças, mulheres rebaixadas (como Flausina, protagonista de “Esses Lopes”, disponível aqui), ou então velhos, como é o caso do Tio Bola, protagonista de “Presepe”, de Tutameia.
No contexto do Natal, esse conto se mostra como uma bela alegoria da renovação da vida e da força de vontade. Como o título indica, remete ao Presépio, ou seja, à cena do nascimento de Jesus. Mas, como quem escreve é Guimarães Rosa, há um sentido a mais: uma presepada é aprontar uma situação fantástica e ridícula, criando-se um verbo disso, vira “presepar” e, conjugando, vira “você presepe”. Então, o conto será sobre a criação, com certa malandragem, da cena do nascimento de Jesus.
Resumindo em resumo: um senhor de oitenta anos, na noite de Natal, não vai junto com a família para a cidade, deixando-o só com um empregado e a cozinheira. Mas ele, contrariando sua própria fragilidade, resolve pedir que levem um boi ao curral, vê também lá um burro e, no meio da noite, escondido, deita-se numa manjedoura improvisada, como se fosse um novo menino Jesus. Acaba dormindo e, de manhã, os dois empregados também lá estavam, compondo uma cena, ao mesmo tempo, terna e insólita.
Como já mencionado na outra análise, há de se ler sem a preocupação de compreender tudo logo na primeira leitura. Melhor é descobrir os jogos de palavras e as imagens sugeridas. E continuar se surpreendendo quando, na segunda leitura, perceber coisas que escaparam na primeira.
Sem mais, vamos a ele:
PRESEPE
(João Guimarães Rosa)
Todos foram à vila, para missa-do-galo e Natal, deixando na fazenda Tio Bola, por achaques[1] de velhice, com o terreireiro[2] Anjão, imbecil, e a cardíaca cozinheira Nhota. Tio Bola aceitara ficar, de boa graça, dando visíveis sinais de paciência. Tão magro, tão fraco: nem piolhos tinha mais. Tudo cabendo no possível, teve uma ideia.
Não de primeira e súbita invenção.
Apreciara antes a ausência de meninos e adultos, que o atormentavam, tratando-o de menos; dos outros convém é a gente se livrar. Logo, porém, casa vazia, os parentes figuravam ainda mais hostis e próximos. A gente precisa também da importunação dos outros. Tio Bola, desestimado, cumpria mazelas diversas, seus oitenta anos; mas afobado e azafamoso[3]. Quis ver visões.
Seu espírito pulou tão quanto à vila, a Natal e missa, aquela merafusa[4]. Topava era tristeza – isto é, falta de continuação. Por que é que a gente necessita, de todo jeito, dos outros? Velho sacode facilmente a cabeça. A ideia lhe chegou então, fantasia, passo de extravagância.
– “Mecê não mije na cama!” – intimara a Nhota, quando, comido o leite com farinha, ele fingia recolher-se. Não cabia no quarto. Natal era noite nova de antiguidade. Tomou o aviso e voltou-se: estafermado[5], no corredor, o Anjão fazia-lhe pelas costas gesto obsceno. Ordenou-lhe então – trouxesse ao curral um boi, qualquer!
Saiu o Anjão a obedecer, gostava do que parecesse feitiço ou maldade. E no pequeno cercado estava já o burro chumbo[6], de que os outros não tinham carecido. Sem excogitamento[7], o burrinho dera a Tio Bola o remate da ideia.
Lá fora o escuro fechava. O Anjão no pátio acendera fogo, acocorava-se ante chama e brasa. Esse se ria do sossego. Também botara milho e sal no cocho, mandado.
Natal era animação para surpresas, tintins tilintos[8], laldas e loas[9]! O burro e o boi – à manjedoura – como quando os bichos falavam e os homens se calavam.
Nhota, em seus cantos, rezava para tomar ar, não baixando minuto, e tudo condenava. Tio Bola esperava que o Anjão se fosse, que Nhota não tossisse mas adormecesse.
Estava de alpercatas[10], de camisolão e sem carapuça[11], esticando à janela pescoço e nariz, muito compridos. Os currais todos ermos[12], menos aquele… Tremia de verdade.
Veio, enfim, à sorrelfa[13]; a horas. Pelas dez horas. Queria ver. Devagar descera, com Deus, a escada. Burro e boi diferençavam-se, puxados da sombra, quase claros. Paz. Sem brusquidão[14] nem bulir: de longe o reconheciam.
Os olhos oferecidos lustravam. Guarani, boi de carro, severo brando. Jacatirão, prezado burrinho de sela. Tio Bola tateou o cocho: limpo, úmido de línguas.
Empinou olhar: a umas estrelas miudinhas. Espiou o redor – caruca[15] – que nem o esquecido, em vivido. Tio Bola devia distrair saudades, a velhice entristecia-o só um pouco. Riu do que não sentiu; riu e não cuspiu. Estava ali a não imaginar o mundo.
Por um tempo, acostumava a vista.
Nhota dormia, agora, decerto; até o Anjão. Os outros, no Natal, na vila, semelhavam sempre fugidos… Quem vinha rebater-lhe o ato, fazer-lhe irrisão[16]? De anos, só isto, hoje somente, tinha ele resolvido e em seu poder: a Noite, o curralete[17], cheiro de estercos, céu aberto, os dois dredemente[18] – gado e cavalgadura. Boi grosso, baixo, tostado, quase rapé[19]. Burro cor de rato. Tão com ele, no meio espaço, de-junto. Caduco de maluco não estava. Não embargando que em espírito da gente ninguém intruje[20]. Apoiou-se no topo do cocho. Bicho não é limpo nem sujo. Ia demorar lá um tanto. Só o viço da noite – o som confuso?
O Anjão, rondava. Nhota, também, com luz em castiçal, corria a casa; não chamava alto, porque lá a doença não lhe dava fôlego. Turro[21], o boi ainda não se deitara, como eles fazem – havia de sentir falta do Guaraná, par seu de junta. Burro não deita: come sempre, ou pára em pé, as horas todas. A gente podia esperar, assim como eles, ocultado num ponto do curral. Tudo era prazo.
Deitava-se no cocho? Não como o Menino, na pura nueza[22]… O voo de serafins, a sumidez[23] daquilo. Mas, pecador, numa solidão sem sala. E um tiquinho de claro-escuro.
Teve para si que podia – não era indino[24] – até o vir da aurora. Que o achassem sem tino perfeito, com algum desarranjo do juízo!
Tão gordo fora; e, assim, como era, tinha só de deixar de fora seus rústicos cotovelos. Agora, o comichar, uma coceira seca. Viu o boi deitar-se também – riscando primeiro com a pata uma cruz no chão, e ajoelhando-se – como eles procedem. O mundo perdeu seu tique-taque. Tombou no quiquiri[25] de um cochilo. Relentava. Ouviu. O Anjão estava ali, no segundo curral, havia coisa de um instante. Que se aquietasse, pelo prazo de três credos.
Manteve-se. A hora dobrou de escura. Meia-noite já bateu? Abriu olhos de caçador. Dessurdo[26], escutou, já atilando[27]. Um abecê, o reportório. Essas estrelas prosseguiam o caminhar, levantadas de um peso. Fazia futuro. O contrário do aqui não é ali… – achou. O boi – testo lento, olhos redondos. O burrinho, orelhas, fofas ventas. Da noite era um brotar, de plantação, do fundo. A noite era o dia ainda não gastado. Vez de espertar-se, viver, esta vida aos átimos[28]… Soporava[29]. Dormiu reto. Dormindo de pés postos.
Acordou, no tremeclarear[30]. Orvalhava. A Nhota dormia também, ali sentada no chão, sem um rezungo[31]. O Anjão, agachado, acendera um foguinho. Conchegados, com o boi amarelão e o burro rato, permaneciam; tão tanto ouvindo se passarinhos em incerta entonação.
A estrela-d’alva se tirou. Já mais clareava. As pretas árvores nos azulados… O Anjão se riu para o sol. Nhota entoava o Bendito, não tinha morrido. Cantando o galo, em arrebato[32]: a última estrelinha se pingou para dentro.
Tio Bola levantou-se – o corpo todo tinha dor-de-cabeça. Deu ordens, de manhã, dia: o Anjão soltasse burro e boi aos campos, a Nhota indo coar café. Os outros vinham voltar, da vila, de Natal e missa-do-galo. Tio Bola subiu a escada, de camisolão e alpercatas, sarabambo[33], repetia:
– Amém, Jesus!
—
[1] mal-estares; [2] cuidador das terras; [3] com grande atividade; [4] confusão; [5] como um estafermo, isto é, alguém que fica no caminho, atrapalhando; [6] cor de chumbo, cinza; [7] pensamentos, meditações; [8] sons de sinos; [9] louvores; [10] calçado de tiras de couro; [11] capuz; [12] desertos; [13] disfarçado; [14] movimentos bruscos; [15] noite; [16] zombaria; [17] pequeno curral; [18] de caso pensado; [19] cor de rapé, amarelo escuro; [20] engane, logre; [21] teimoso; [22] de “estar nu”; [23] tendência a sumir; [24] indigno; [25] coisa pequena, sem importância; [26] que não é surdo; [27] tomando habilidades; [28] breves instantes; [29] dormia; [30] aurora, nascer do dia; [31] resmungo, gesto; [32] movimento súbito e repentino; [33] junção de “sarabanda” (dança de gestos desenvoltos) com “bambo” (frouxo, sem firmeza).
***
A primeira coisa que se merece apontar é que a ironia no protagonista, que antes era tão gordo, agora, aos oitenta anos, é magro e fraco, conservando o nome de Tio Bola. Toda a cena se passa na noite de Natal, com o Tio Bola, com sentimentos confusos, aproveitando que estava sozinho (“dos outros convém é a gente se livrar”), teve uma ideia, pensou em fazer uma presepada, pois “não cabia no quarto”.
Coloca um boi e um burro no curral, sendo que esses dois animais surgem como personagens continuamente referidos (o boi Guarani e o burro Jacatirão). E o Tio Bola, cercado de vigias, espera a alta noite para poder escapar de casa e ir até o curral. Se Nhota é uma senhora cardíaca que, dentro de suas limitações, demonstra cuidados com o velho, Anjão (anjo grande) tem gestos obscenos e parece um pouco alheio ao que ocorre ao seu redor.
Durante boa parte do conto, o cenário se mantém em suspensão, criando uma expectativa em torno do plano do velho, para saber se funcionará ou não. O Anjão ronda, Nhota observa, Tio Bola fica no aguardo.
À noite, tornando-se maior do que si mesmo, quando sente que todos dormem, e “abrindo olhos de caçador”, Tio Bola sai de casa, chega até o cocho e prepara-se para deitar, como uma manjedoura: “Não como o Menino, em pura nueza (…) mas, pecador, numa solidão sem sala”. As frases que se vão compondo buscam criar a atmosfera de uma renovação, celebrando o nascimento de Jesus, mas projetado no velho. Há, inclusive, o processo de passagem, de quando ele adormece e acorda, como uma nova vida que se inaugura.
Os dois empregados, que inicialmente são vistos como obstáculos ou empecilhos, tornam-se aos poucos partes integrantes da cena. O peso da noite se alivia, com o Anjão se rindo ao sol, Nhota agradecendo viver mais um dia. E o Tio Bola, tornado menino e renascido, volta para seu quarto, entoando um “Amém, Jesus”, como uma nova energia que lhe vem de dentro.
Esse conto traz a simplicidade do cenário do Presépio com um personagem tão díspar para a situação. É um modo de celebração da vida em suas mais variadas formas, com a figura do menino Jesus como essa fonte.
Feliz Natal. E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
Comment
Incrível! Eu adorei. Feliz Natal!