Guimarães Rosa é mágico, místico, múltiplo. Talvez um dos mais enigmáticos dos escritores brasileiros, ele constrói, no sertão de Minas Gerais, um universo que atinge todos os homens e todos os tempos. Sim, a sua leitura exige uma atenção dobrada, redobrada e tresdobrada, mas, uma vez mergulhado nesse rio de palavras, o leitor se descobre transformado, por ver tanta coisa brotar dessas estórias.
Grande Sertão: Veredas é sua obra mais famosa. Mas, antes de enfrentá-la, sugere-se visitar outras paragens, nas Primeiras estórias ou então em Tutameia (Terceiras estórias) – Quanto às “segundas estórias”, Guimarães Rosa dá uma risada e se afasta… Aqui há contos menores, mas em todos há personagens que são homenzarrões-zinhos, pessoas triviais e comuns, mas com grande humanidade interna.
Antes do conto abaixo, que está em Tutameia, para auxiliar, vale um resumo da estória (com Guimarães Rosa, spoilers são sempre bem-vindos): Uma mulher chamada Flausina conta a história de sua vida, marcada por encontros com os homens da família Lopes. Principia com Zé Lopes, que a seduziu e a levou de casa. Era bruto, ciumento, malvado. A moça foi descobrindo artimanhas, modos de enganá-lo e ir pegando seu dinheiro, aprendendo a ler e escrever, ao mesmo tempo em que ia envenenando o marido aos poucos. Depois que ele morreu, dois outros Lopes vieram: Sertório, que se juntou com ela, e Nicão, que ficava em redor. A moça jogou um contra o outro e ambos se mataram. Ainda tinha mais um Lopes, Sorocabano, já velho, que ela tratou melhor, mas, como era Lopes, forçou demais e adiantou a morte. Agora, já mulher feita e com três filhos grandes (que mandou para longe, por serem Lopes também), encontrou o amor num rapaz e quer ser feliz.
Depois disso tudo, leiam (se possível, em voz alta) como Guimarães Rosa dá vida às palavras e à moça.
Sem mais, vamos a ele:
ESSES LOPES
(João Guimarães Rosa)
Má gente, de má paz; deles, quero distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três. Livre, por velha nem revogada não me dou, idade é a qualidade. Amo um homem, ele vive de admirar meus bons préstimos, boca cheia d’água. Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo[1]. Quero falar alto. Lopes nenhum me venha, que às dentadas escorraço[2]. Para trás, o que passei, foi arremedando e esquecendo. Ainda achei o fundo do meu coração. A maior prenda, que há, é ser virgem.
Mas, primeiro, os outros obram a história da gente.
Eu era menina, me via vestida de flores. Só que o que mais cedo reponta[3] é a pobreza. Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de dinheiro? Mocinha fiquei, sem da inocência me destruir, tirava junto cantigas de roda e modinhas de sentimento. Eu queria me chamar Maria Miss, reprovo meu nome, de Flausina.
Deus me deu esta pintinha preta na alvura do queixo — linda eu era até a remirar[4] minha cara na gamela dos porcos, na lavagem. E veio aquele, Lopes, chapéu grandão, aba desabada. Nenhum presta; mas esse, Zé, o pior, rompente[5] sedutor. Me olhava: aí eu espiada e enxergada, no ter de me estremecer.
A cavalo ele passava, por frente de casa, meu pai e minha mãe saudavam, soturnos[6] de outro jeito. Esses Lopes, raça, vieram de outra ribeira, tudo adquiriam ou tomavam; não fosse Deus, e até hoje mandavam aqui, donos. A gente tem é de ser miúda, mansa, feito botão de flor. Mãe e pai não deram para punir por mim.
Aos pedacinhos, me alembro.
Mal com dilato[7] para chorar, eu queria enxoval, ao menos, feito as outras, ilusão de noivado. Tive algum? Cortesias nem igreja. O homem me pegou, com quentes mãos e curtos braços, me levou para uma casa, para a cama dele. Mais aprendi lição de ter juízo. Calei muitos prantos. Aguentei aquele caso corporal.
Fiz que quis: saquei malinas[8] lábias. Por sopro do demo, se vê, uns homens caçam é mesmo isso, que inventam. Esses Lopes! — com eles, nenhum capim, nenhum leite. Falei, quando dinheiro me deu, afetando ser bondoso: — “Eu tinha três vinténs, agora tenho quatro…” Contentado[9] ele ficou, não sabia que eu estava abrindo e medindo.
Para me vigiar, botou uma preta magra em casa, Si-Ana. Entendi: a que eu tinha de engambelar[10], por arte de contas; e à qual chamei de madrinha e comadre. Regi[11] de alisar por fora a vida. Deitada é que eu achava o somenos do mundo, camisolas do demônio.
Ninguém põe ideia nesses casos: de se estar noite inteira em canto de catre[12], com o volume do outro cercando a gente, rombudo[13], o cheiro, o ressonar, qualquer um é alheios abusos. A gente, eu, delicada moça, cativa assim, com o abafo[14] daquele, sempre rente, no escuro. Daninhagem[15], o homem parindo os ocultos pensamentos, como um dia come o outro, sei as perversidades que roncava? Aquilo tange[16] as canduras de noiva, pega feito doença, para a gente em espírito se traspassa. Tão certo como eu hoje estou o que nunca fui. Eu ficava espremida mais pequena, na parede minha unha riscava rezas, o querer outras larguras.
Tracei as letras. Carecia de ter o bem ler e escrever, conforme escondida. Isso principiei — minha ajuda em jornais de embrulhar e mais com as crianças de escola.
E dê-cá dinheiro.
O que podendo, dele tudo eu para mim regrava. Mealhava[17]. Fazia portar escrituras. Sem acautelar[18], ele me enriquecia. Mais, enfim que o filho dele nasceu, agora já tinha em mim a confiança toda, quase. Mandou embora a preta Si-Ana, quando levantei o falso alegado: que ela alcovitava[19] eu cedesse vezes carnais a outro, Lopes igual — que da vida logo desapareceu, em sistema de não-se-sabe.
Dito[20]: meio se escuta, dobro se entende. Virei cria de cobra. Na cachaça, botava sementes da cabaceira-preta, dosezinhas; no café, cipó timbó e saia-branca. Só para arrefecer[21] aquela desatada vontade, nem confirmo que seja crime. Com o tingui-capeta, um homem se esmera, abranda[22]. Estava já amarelinho, feito ovo que ema acabou de pôr. Sem muito custo, morreu. Minha vida foi muito fatal. Varri casa, joguei o cisco para a rua, depois do enterro.
E os Lopes me davam sossego?
Dois deles, tesos[23], me requerendo[24], o primo e o irmão do falecido. Mexi em vão por me soltar, dessas minhas pintadas feras. Nicão, um, mau me emprazou[25]: — “Despois da missa de mês, me espera…” Mas o Sertório, senhor, o outro, ouro e punhal em mão, inda antes do sétimo dia já entrava por mim a dentro em casa. Padeci com jeito. E o governo da vida? Anos, que me foram, de gentil sujeição[26], custoso que nem guardar chuva em cabaça, picar fininho a couve.
Tanto na bramosia[27] os dois tendo ciúme. Tinham de ter, autorizei. Nicão a casa rodeava. Ao Sertório dei mesmo dois filhos? Total, o quanto que era dele, cobrei, passando ligeiro já para minhas posses; até honra. Experimentei finuras[28] novas — somente em jardim de mim, sozinha. Tomei ar de mais donzela.
Sorria debruçada em janela, no bico do beiço, negociável; justiçosa[29]. Até que aquela ideia endurecesse. Eu já sabia que ele era Lopes, desatinado, fogoso, água de ferver fora de panela. Vi foi ele sair, fulo de fulo, revestido de raiva, com os bolsos cheios de calúnias. Ao outro eu tinha enviado os recados, embebidos em doçuras. Ri muito útil ultimamente. Se enfrentaram, bom contra bom, meus relâmpagos, a tiros e ferros. Nicão morreu sem demora. O Sertório durou, uns dias. Inconsolável chorei, conforme os costumes certos, por a piedade de todos: pobre, duas e meio três vezes viúva. Na beira do meu terreiro.
Mas um, mais, porém, ainda me sobrou. Sorocabano Lopes, velhoco, o das fortes propriedades. Me viu e me botou na cabeça. Aceitei, de boa graça, ele era o aflitinho dos consolos. Eu impondo: — “De hoje por diante, só muito casada!” Ele, por fervor, concordou — com o que, para homem nessa idade inferior, é abotoar botão na casa errada. E, este, bem demais e melhor tratei, seu desejo efetuado.
Por isso, andei quebrando metade da cabeça: dava a ele gordas, temperadas comidas, e sem descanso agradadas horas — o sujeito chupado de amores, de chuchurro[30]. Tudo o que é bom faz mal e bem. Quem morreu mais foi ele. Daí, tudo tanto herdei, até que com nenhum enjoo.
Entanto que enfim, agora, desforrada. O povo ruim terminou, aqueles. Meus filhos, Lopes, também, provi de dinheiro, para longe daqui viajarem gado. Deixo de porfias[31], com o amor que achei. Duvido, discordo de quem não goste. Amo, mesmo. Que podia ser mãe dele, menos me falem, sou de me constar em folhinhas e datas?
Que em meu corpo ele não mexa fácil. Mas que, por bem de mim, me venham filhos, outros, modernos e acomodados. Quero o bom-bocado que não fiz, quero gente sensível. De que me adianta estar remediada e entendida, se não dou conta de questão das saudades? Eu, um dia, fui já muito menininha… Todo o mundo vive para ter alguma serventia. Lopes, não! — desses me arrenego [32].
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[1] bem-estar; [2] expulso; [3] aparece; [4] examinar; [5] arrogante; [6] silenciosos; [7] demora; [8] malignas; [9] feliz, satisfeito; [10] enganar; [11] tive o domínio, aprendi; [12] cama; [13] bruto, estúpido; [14] sufocação; [15] feita erva-daninha; [16] toca, cerca; [17] juntava dinheiro pouco a pouco; [18] ter cuidado; [19] organizava encontros; [20] boato, fofoca; [21] esfriar; [22] acalma, sossega; [23] firmes, fortes; [24] exigir, ou então, querer de novo; [25] marcou um prazo; [26] submissão; [27] berreiro, gritos, ação de bramar; [28] delicadezas; [29] justiceira; [30] beijo ruidoso; [31] procuras, buscas; [32] tenho aversão, amaldiçoo.
***
O que se vê, em primeiro lugar, é a obstinação da protagonista em buscar a sua felicidade, embora sofrendo nas mãos dos muitos Lopes. Desde o início, chamando-os de “má gente, de má paz”, até o final, em que declara que essa gente não tem serventia alguma, há essa oposição entre o sujeito em conflito com o ambiente. Flausina (que preferia se seu nome fosse Maria Miss) busca manter a sua inocência de menina e moça, ao mesmo tempo em que usa de suas armas para enfrentar as adversidades da vida (e dos Lopes). Se no início via-se tão bonita – mesmo no seu reflexo na água choca dos porcos –, quando foi seduzida pelo Zé Lopes não teve socorro de seus pais (“Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de dinheiro?”). Como a família dele era rica, dona de muitas propriedades, ela foi com ele, sofrendo com a sua rudeza e maus-tratos.
É então que ela começa suas estratégias, torna-se amiga da Si-Ana, mulher posta para vigiá-la, mostra-se econômica para o marido, só para ir juntando dinheiro sem que ele soubesse. Teve um filho com ele e ainda começou a espalhar boatos de que estava se encontrando com outro Lopes, que, na sequência, “da vida logo desapareceu, em sistema de não-se-sabe”… Por fim, tornada “cria de cobra”, ela vai envenenando o marido, aos poucos, para ninguém perceber.
Mas os Lopes voltaram, na figura de Nicão (que disse que ia até ela na semana seguinte ao enterro) e Sertório (que foi mais rápido). Flausina cedeu, pois não via saída, sentindo novamente os anos passando de modo “custoso que nem guardar chuva em cabaça, picar fininho a couve” – duas imagens muito interessantes de associar à situação.
Ela soube jogar com o ciúme dos dois (inclusive com um ponto de interrogação sobre os dois filhos de Sertório), ao mesmo tempo em que passava todas as posses ao seu nome e buscava cultivar, dentro de si, aquela parcela da menina e moça que fora, antes dos Lopes.
Conhecendo a ira dos Lopes (“água de ferver fora de panela”, “com os bolsos cheios de calúnias”), Flausina vê os dois se enfrentarem e morrerem, tornando-a “duas e meio três vezes viúva”.
Por fim, sobrou um, Sorocabano Lopes, que era velho, mas tinha as “fortes propriedades”. Ela forçou-o a se casar, o que, para homem nessa idade, “é abotoar botão na casa errada”… Com esse, ela foi muito diferente: dava-lhe comidas gordurosas e “agradadas horas” sem descanso, forçando o coração do velho, que, afinal, morreu feliz…
Sem Lopes, Flausina sente-se vingada (“o povo ruim terminou, aqueles”). E mesmo os filhos, metade Lopes, mandou-os embora, pois não queria nem vestígios.
Então, o conto encerra-se retomando o que já havia no primeiro parágrafo. Ela encontrou o amor com um jovem rapaz, que admira os seus bons préstimos e fica com água na boca, mesmo com a diferença de idade (“Que podia ser mãe dele, menos me falem, sou de me constar em folhinhas e datas?”). E finalmente pode dar vazão àquela moça represada dentro dela, agora que está “remediada e entendida”, e resolver essa “questão das saudades”. Afinal de contas, “todo o mundo vive para ter alguma serventia”. Menos os Lopes, que ela amaldiçoa e odeia…
Como se vê, a escrita rosiana, ao mesmo tempo em que é densa, é capaz de lances de extrema beleza e grandes jogos de palavras. Quem lê Guimarães Rosa sabe que toda leitura é uma nova leitura, capaz de descobrir coisas que passaram despercebidas numa primeira vez.
E o que mais impressiona é que o próprio autor coloca como epígrafe do livro Tutameia uma frase do filósofo Schopenhauer: “Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob luz inteiramente outra”…
Ou seja, é preciso ler Guimarães Rosa, e depois reler. Pois a vida que está nessas estórias todas, e a língua na qual elas se costuram e tecem, não se pode compreender tudo de uma vez. É necessário saborear!
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
3 Comments
[…] crianças, mulheres rebaixadas (como Flausina, protagonista de “Esses Lopes”, disponível aqui), ou então velhos, como é o caso do Tio Bola, protagonista de “Presepe”, de […]
qm seria o narrador?
Aqui é a própria Flausina, protagonista e narradora, de sua vida de ódios curtidos e lembranças entrançadas, pra extrair do mundo a existência desses Lopes todos.