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Demogorgon

novembro 5, 2017

No jogo de heterônimos que Fernando Pessoa criou, cada um de seus poetas possui uma estética própria, uma inclinação particular nas rimas e no ritmo e, em especial, um modo de ver a si e ao mundo. Alberto Caeiro vê o que vê, e cada poema seu se constrói como um ato de sentir as coisas como elas são, esquivando-se de pensar e analisar. Ricardo Reis vê sem querer ver, com cada poema sendo máscara para dizer que não quer sentir, pois isso seria envolver-se, e envolver-se exige uma entrega que ele não se dispõe a fazer. Álvaro de Campos vê e se contorce, tanto por, às vezes, querer sentir tudo que puder de todas as maneiras possíveis, quanto por carregar dentro de si uma angústia constante e em ebulição de não conseguir sentir plenamente.

(Logicamente que há muito mais coisas a se falar sobre todo o labirinto de espelhos que é Pessoa, mas, por ora, aproveitando a nova temporada de Stranger Things, surge um poema de Álvaro de Campos em que a evocação atual se conecta a toda uma tradição em torno de uma palavra e de um conceito.)

Sem mais, vamos a ele:

 

DEMOGORGON

(Álvaro de Campos)

 

Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda.

Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.

Pressinto um acontecimento do lado de lá das frontarias e dos movimentos.

 

Não, não, isso não!

Tudo menos saber o que é o Mistério!

Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,

Não vos ergais nunca!

 

O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!

Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada!

A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo,

Deve trazer uma loucura maior que os espaços

Entre as almas e entre as estrelas.

 

Não, não, a verdade não! Deixai-me estas casas e esta gente;

Assim mesmo, sem mais nada, estas casas e esta gente…

Que bafo horrível e frio me toca em olhos fechados?

Não os quero abrir de viver! Ó Verdade, esquece-te de mim!

 

***

 

Esse poema traz como data de criação 12 de abril de 1928, razão pela qual Fernando Pessoa não terá assistido à série. Da mesma forma, é muito improvável que os Irmãos Duffer tenham lido Álvaro de Campos. Mas o elemento que os conecta remete à entidade da mitologia grega que representa um monstro supremo, tão temido que nem seu nome deveria ser pronunciado… E assim o Demogorgon (ou seu símbolo) foi sendo inserido em diversas culturas, aparecendo nas Metamorfoses, de Ovídio (43 a.C.-18 a.C), um monstro a se vencer em Orlando Furioso, do italiano Ludovico Ariosto (1474-1533), e um dos seres malignos que Satã encontra em sua rebelião contra Deus, em Paraíso Perdido, do inglês John Milton (1608-1674) e um dos antagonistas das histórias construídas em RPG (role-playing game) como Dungeons & Dragons.

Mas, no caso do poema de Álvaro de Campos, o componente demoníaco se ausenta, criando-se antes uma dualidade, muito recorrente em sua poesia, do Eu-de-sonho contra o Eu-real. Como se o Demogorgon pessoano se descobrisse como marginal desse mundo e não quisesse mais manter-se nele. Ao se ler “Tabacaria”, “Adiamento” ou “Pecado original”, nota-se a mesma angústia no poeta, de reconhecer-se preso a uma realidade que lhe é estranha, alheia, opositora, e tentar escapar para uma outra realidade, representada pelo sonho ou pela imaginação.

Nesse poema, o início já efetua tal contraposição nas três frases, dispostas nos três versos: há a realidade trivial da rua, das casas e das gentes; há o poeta que vê a isso, mas não se envolve com isso; e há um deslocamento para algo impreciso (“do lado de lá”) que se sugere.

A ruptura que Álvaro de Campos propõe, e que será a tônica de todo o poema, é a negação de desvendar o que é o Mistério. Se todas as artes, as filosofias e as ciências estão sempre em constante descoberta de algo, o poeta não quer isso, por temer não suportar o peso da compreensão consciente das coisas (da Verdade Final). Por isso quer manter as Pálpebras Descidas (fechadas), ficando apenas na superfície do Universo e não se aprofundando nele.

A vontade de permanecer na ignorância – de não saber – seria, para o poeta, sinônimo da própria felicidade, pois viver e morrer alheio e sem consciência lhe traria paz. Para comprovar isso, nos versos 10 a 12, há a revelação do elemento que, se fosse conhecido, enlouqueceria qualquer pessoa: a compreensão do porquê da existência humana, dos seres e de tudo.

O heterônimo, então, encerra o poema enfatizando que quer uma existência sem mais nada, só com casas (paradas) e gente (que anda), quase seres automáticos, sem consciência das coisas, pois sente medo do conhecimento que a Verdade poderia trazer. E fecha os olhos como forma de isolar-se da vida e fechar-se.

 

É importante que se lembre que Álvaro de Campos nunca existiu, mas isso é um jogo literário de Fernando Pessoa, que cria esse poeta como forma de pôr em texto as angústias modernas de perceber-se num mundo em descompasso, ao qual não parece pertencer. E que ainda faz sentido e comprova aquilo que o escritor português Vergílio Ferreira dizia (e se não disse, poderia ter dito): “Quando lemos Fernando Pessoa, sentimo-nos mais inteligentes”.

Por isso que um texto literário nunca se encerra, pois novos leitores surgem e acrescentam, a todas as leituras precedentes, novos sentidos que vêm de novos contextos. E que os fãs de Stranger Things se tornem fãs de Álvaro de Campos, em suas explosões e devaneios que movem o mundo todo pelo poder da palavra (quase como a Eleven com a mente…). E que os fãs de Álvaro de Campos descubram, em Stranger Things e em tudo que lerem e virem, uma possibilidade de desvendar o que há por trás do Mistério, seja o Mundo Invertido, seja a Verdade Final, estando sempre com pálpebras levantadas e olhos atentos.

E pronto!

 

por Saulo Gomes Thimóteo

Álvaro de CamposFernando Pessoamodernismo
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Literatura portuguesa

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Comment


Lucas Nascimento
June 24, 2022 at 11:32 am
Reply

Quando li esse poema não vou negar que pensei logo na Série e fui procurando conexões entre a menção ao ser mitológico e as duas obras. Excelente análise!



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