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Psicologia da composição

abril 12, 2018

João Cabral de Melo Neto é um poeta conhecido e desconhecido. Conhecido especialmente pelo poema dramático Morte e vida severina, com seu protagonista rumando do sertão pernambucano para a capital. Mas esse “auto de Natal pernambucano” – assim chamado pelo nascimento da nova vida, carregada de esperança em meio às mortes que Severino viu em seu caminho – foi uma encomenda feita ao poeta, razão pela qual não era seu poema preferido…

Boa parte do grande público desconhece o restante da obra de João Cabral, tão forte, tão grandiosa e tão incisiva. Para o poeta, toda palavra tem peso, deve valer e deve ser dita para significar. Não há espaço para subjetividades e emoções, ao invés disso, mostra-se o poema como lugar de descobrir o mundo, o homem e as palavras como pontos de acesso a uma mais nítida e mais clara visão, ligando-se tudo isso com fios de força. Um dos poemas, “Psicologia da composição”, presente nos Cem melhores poemas brasileiros do século (XX, no caso), é um belo exemplo da busca do autor pela expressividade da poesia. Na leitura, pede-se que se atente aos símbolos evocados (a concha, o papel, a cinza, a flor, a abelha, a pedra e todos os demais) e às frases construídas, algumas um pouco embaralhadas em pausas… Mesmo que, à primeira leitura, pareçam estranhas associações, algum caminho se irá achar e de grande valor, peso e força.

Sem mais, vamos a ele:

 

PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO

(João Cabral de Melo Neto)

 

1.

Saio de meu poema

como quem lava as mãos.

 

Algumas conchas tornaram-se,

que o sol da atenção

cristalizou; alguma palavra

que desabrochei, como a um pássaro.

 

Talvez alguma concha

dessas (ou pássaro) lembre,

côncava, o corpo do gesto

extinto que o ar já preencheu;

 

talvez, como a camisa

vazia, que despi.

 

2.

Esta folha branca

me proscreve o sonho,

me incita ao verso

nítido e preciso.

 

Eu me refugio

nesta praia pura

onde nada existe

em que a noite pouse.

 

Como não há noite

cessa toda fonte;

como não há fonte

cessa toda fuga;

 

como não há fuga

nada lembra o fluir

de meu tempo, ao vento

que nele sopra o tempo.

 

3.

Neste papel

pode teu sal

virar cinza;

 

pode o limão

virar pedra;

o sol da pele,

o trigo do corpo

virar cinza.

 

(Teme, por isso,

a jovem manhã

sobre as flores

da véspera.)

 

Neste papel

logo fenecem

as roxas, mornas

 

flores morais;

todas as fluidas

flores da pressa;

todas as úmidas

flores do sonho.

 

(Espera, por isso,

que a jovem manhã

te venha revelar

as flores da véspera.)

 

4.

O poema, com seus cavalos,

quer explodir

teu tempo claro; rompendo

seu branco fio, seu cimento

mudo e fresco.

 

(O descuido ficara aberto

de par em par;

um sonho passou, deixando

fiapos, logo árvores instantâneas

coagulando a preguiça.)

 

5.

Vivo com certas palavras,

abelhas domésticas.

 

Do dia aberto

(branco guarda-sol)

esses lúcidos fusos retiram

o fio de mel

(do dia que abriu

também como flor)

 

que na noite

(poço onde vai tombar

a aérea flor)

persistirá: louro

sabor, e ácido

contra o açúcar do podre.

 

6.

Não a forma encontrada

como uma concha, perdida

nos frouxos areais

como cabelos;

 

não a forma obtida

em lance santo ou raro,

tiro nas lebres de vidro

do invisível;

 

mas a forma atingida

como a ponta do novelo

que a atenção, lenta,

desenrola,

 

aranha; como o mais extremo

desse fio frágil, que se rompe

ao peso, sempre, das mãos

enormes.

 

7.

É mineral o papel

onde escrever

o verso; o verso

que é possível não fazer.

 

São minerais

as flores e as plantas,

as frutas, os bichos

quando em estado de palavra.

 

É mineral

a linha do horizonte,

nossos nomes, essas coisas

feitas de palavras.

 

É mineral, por fim,

qualquer livro:

que é mineral a palavra

escrita, a fria natureza

 

da palavra escrita.

 

8.

Cultivar o deserto

como um pomar às avessas.

 

(A árvore destila

a terra, gota a gota;

a terra completa

caiu, fruto!

 

Enquanto na ordem

de outro pomar

a atenção destila

palavras maduras.)

 

Cultivar o deserto

como um pomar às avessas:

 

então, nada mais

destila; evapora;

onde foi maçã

resta uma fome;

 

onde foi palavra

(potros ou touros

contidos) resta a severa

forma do vazio.

 

***

 

Diante do título, transmite-se a ideia de que se vai analisar as diversas e múltiplas etapas e níveis da composição poética e da mente do artista que escreve. Esta leitura, por certo incompleta, mas bem-intencionada, pretende-se apontar caminhos dentro das oito partes em que o poema se divide, menos como uma explicação nítida do que como um incentivo a uma segunda leitura (e talvez terceira):

  1. A palavra: o poeta vê o poema como um trabalho, um ofício (por isso, inclusive, que ele “sai” do poema, após ter “entrado”). Nessa lida, cada palavra apresenta-se como “concha”, isto é, uma casca. Pode ser que a atenção da leitura conserve o sentido de algumas das palavras (ou mesmo permita voos mais altos, “a concha cristalizada desabrochando em pássaro” – bela associação entre os reinos mineral, vegetal e animal). Como na concha, o formato da palavra pode lembrar o ato que a motivou, assim como a camisa poderia evocar o próprio formato do corpo vivo que ali estava;
  2. Papel em branco: O lugar em que o poema é escrito, antes de haver palavras, é uma sugestão, um incitamento, um convite “ao verso nítido e preciso”. A brancura da página é igual a uma “praia pura onde nada existe”, mas que pode receber a instabilidade da noite, das dúvidas, das palavras. Faz-se, então, uma cadência de símbolos que vai do concreto da escrita voltando à intenção da mente: se não há noite (isto é, se não se escreve nada na folha em branco), não há fonte; se não há fonte (isto é, se não se tem uma intenção de escrever), não há fuga; se não há fuga (isto é, se não se projeta para uma introspecção), não há nada que mostre a própria existência ou a compreensão das coisas;
  3. O poema: Surge o símbolo da cinza como destino de vários outros, altamente sugestivos (o sal, o limão, o sol da pele, o trigo do corpo). Com isso, João Cabral evidencia que, as palavras que se põem no papel podem tornar-se apenas letra morta, sem qualquer ideia da vida que as teria motivado e criado. Somando-se à cinza, vêm as flores (que podem durar apenas um dia), mesmo as “flores” da moral, da pressa e do sonho. Ou seja, o valor do poema se revela quando passa o momento inicial, quando o calor da novidade dá lugar a um sereno assentar de ideias e palavras;
  4. O poema II: Continua-se com a ideia de contrapor a explosão do poema recém-feito (os “cavalos” e o “romper” o tempo) com a permanência duvidosa (o “sonho” que “passou, deixando fiapos” e a “preguiça”);
  5. O tempo e a poesia: Ligando-se ao símbolo da flor, surge as “abelhas domésticas”, que seriam as palavras que o poeta usa e convive. A segunda e terceira estrofes dessa seção estão pontuadas de parêntesis, que funcionam como discursos paralelos que se somam e ilustram a frase central, que em modo direto diz “Do dia aberto, esses lúcidos fusos retiram o fio de mel que na noite persistirá”. Ou seja, as abelhas/as palavras poéticas absorverão o dia e criarão o mel/o poema que conseguirá sobreviver à noite. Interessante apontar que há uma contraposição entre duas formas aparentes de doçura: o mel (feito pelas abelhas, então força viva e atuante de transformação) e o “açúcar do podre” (feito por extração, então bagaço passivo sem força);
  6. A arte poética: Explicando como deve ser um poema (similar ao que Carlos Drummond faria em “Procura da poesia”), João Cabral de Melo Neto fará quatro estrofes, duas negando, uma afirmando e uma exemplificando. A poesia não é a “forma encontrada como uma concha”, achada por acaso, como inspiração súbita da paisagem. Também não é “forma obtida em lance santo ou raro”, como a inspiração divina de uma musa inexistente (com a bela imagem das “lebres de vidro do invisível”, isto é, algo que não se vê, rapidamente some, e que dificilmente se acerta). A poesia, por fim, é revelada como a “ponta do novelo”, a se desenrolar continuamente, graças à atenção. Como imagem, surge a “aranha”, tecendo esse “fio frágil” do sentido e da expressividade, sempre correndo o risco de se romper e perder sob as “mãos enormes”, ignorantes ou descuidadas;
  7. A pedra: Como já dito antes, toda palavra, para João Cabral, deve ser pedra. Por isso, quatro estrofes começadas pela afirmação “É mineral” apontam a imagem de que, uma vez na forma escrita, tudo se torna concreto. O papel é concreto, “flores, plantas, frutas, bichos”, isto é, formas vivas que morrerão, mas que se conservam e duram para o além quando postas em “estado de palavra”. E mesmo as abstrações, como o “horizonte, o nome” também ganham o peso, quando se convertem em palavras. Assim, a palavra é fria e dura, e tudo pode ser posto em palavras;
  8. A leitura: Ligando-se à seção anterior, fecha-se o poema com uma ideia de que, se todo sonho, toda vida se pode verter em palavras, não quer dizer que tudo permanecerá. É preciso que as palavras-pedras tenham não somente peso, mas força e densidade. Dessa forma, o que aparentemente é morto, traz consigo a possibilidade de significação e vida (“Cultivar o deserto como um pomar às avessas”). Dois pomares se mostram entre parêntesis: o de árvores, que tiram a energia da terra para gerar frutos; e o “outro pomar”, de sentidos, que extraem os nutrientes das palavras maduras. E a conclusão (ou proposta de seguir) é justamente o que se faz com esses pomares: no primeiro, antes havia uma maçã, mas ela acaba e regressará a fome ou a necessidade de mais; no segundo, antes havia a palavra, mas ela de nada vale e cairá no vazio, se não se fizer o exercício (por parte do leitor) de cultivar as palavras e de extrair os sentidos não apenas superficiais da vida aparente e imediata, mas buscando os nutrientes ocultos e, por isso mesmo, duradouros.

 

Sim, João Cabral é exigente. Sim, João Cabral quer do leitor a visão da palavra e do peso da palavra e do valor do peso da palavra. Vendo poemas como “Tecendo a manhã”, “Catar feijão”, “Educação pela pedra”, “Graciliano Ramos”, nota-se que, em sua obra, engenhosa e de construção, é preciso saber o que se diz e, mais do que isso, saber como se diz.

E pronto!

por Saulo Gomes Thimóteo

João Cabral de Melo Netomodernismopoemaséculo XX
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Literatura brasileira

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