João Cabral de Melo Neto é um poeta conhecido e desconhecido. Conhecido especialmente pelo poema dramático Morte e vida severina, com seu protagonista rumando do sertão pernambucano para a capital. Mas esse “auto de Natal pernambucano” – assim chamado pelo nascimento da nova vida, carregada de esperança em meio às mortes que Severino viu em seu caminho – foi uma encomenda feita ao poeta, razão pela qual não era seu poema preferido…
Boa parte do grande público desconhece o restante da obra de João Cabral, tão forte, tão grandiosa e tão incisiva. Para o poeta, toda palavra tem peso, deve valer e deve ser dita para significar. Não há espaço para subjetividades e emoções, ao invés disso, mostra-se o poema como lugar de descobrir o mundo, o homem e as palavras como pontos de acesso a uma mais nítida e mais clara visão, ligando-se tudo isso com fios de força. Um dos poemas, “Psicologia da composição”, presente nos Cem melhores poemas brasileiros do século (XX, no caso), é um belo exemplo da busca do autor pela expressividade da poesia. Na leitura, pede-se que se atente aos símbolos evocados (a concha, o papel, a cinza, a flor, a abelha, a pedra e todos os demais) e às frases construídas, algumas um pouco embaralhadas em pausas… Mesmo que, à primeira leitura, pareçam estranhas associações, algum caminho se irá achar e de grande valor, peso e força.
Sem mais, vamos a ele:
PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
(João Cabral de Melo Neto)
1.
Saio de meu poema
como quem lava as mãos.
Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.
Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;
talvez, como a camisa
vazia, que despi.
2.
Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.
Como não há noite
cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;
como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo.
3.
Neste papel
pode teu sal
virar cinza;
pode o limão
virar pedra;
o sol da pele,
o trigo do corpo
virar cinza.
(Teme, por isso,
a jovem manhã
sobre as flores
da véspera.)
Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho.
(Espera, por isso,
que a jovem manhã
te venha revelar
as flores da véspera.)
4.
O poema, com seus cavalos,
quer explodir
teu tempo claro; rompendo
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco.
(O descuido ficara aberto
de par em par;
um sonho passou, deixando
fiapos, logo árvores instantâneas
coagulando a preguiça.)
5.
Vivo com certas palavras,
abelhas domésticas.
Do dia aberto
(branco guarda-sol)
esses lúcidos fusos retiram
o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor)
que na noite
(poço onde vai tombar
a aérea flor)
persistirá: louro
sabor, e ácido
contra o açúcar do podre.
6.
Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;
não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;
mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,
aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.
7.
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.
São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.
É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.
É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza
da palavra escrita.
8.
Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.
(A árvore destila
a terra, gota a gota;
a terra completa
caiu, fruto!
Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras.)
Cultivar o deserto
como um pomar às avessas:
então, nada mais
destila; evapora;
onde foi maçã
resta uma fome;
onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio.
***
Diante do título, transmite-se a ideia de que se vai analisar as diversas e múltiplas etapas e níveis da composição poética e da mente do artista que escreve. Esta leitura, por certo incompleta, mas bem-intencionada, pretende-se apontar caminhos dentro das oito partes em que o poema se divide, menos como uma explicação nítida do que como um incentivo a uma segunda leitura (e talvez terceira):
- A palavra: o poeta vê o poema como um trabalho, um ofício (por isso, inclusive, que ele “sai” do poema, após ter “entrado”). Nessa lida, cada palavra apresenta-se como “concha”, isto é, uma casca. Pode ser que a atenção da leitura conserve o sentido de algumas das palavras (ou mesmo permita voos mais altos, “a concha cristalizada desabrochando em pássaro” – bela associação entre os reinos mineral, vegetal e animal). Como na concha, o formato da palavra pode lembrar o ato que a motivou, assim como a camisa poderia evocar o próprio formato do corpo vivo que ali estava;
- Papel em branco: O lugar em que o poema é escrito, antes de haver palavras, é uma sugestão, um incitamento, um convite “ao verso nítido e preciso”. A brancura da página é igual a uma “praia pura onde nada existe”, mas que pode receber a instabilidade da noite, das dúvidas, das palavras. Faz-se, então, uma cadência de símbolos que vai do concreto da escrita voltando à intenção da mente: se não há noite (isto é, se não se escreve nada na folha em branco), não há fonte; se não há fonte (isto é, se não se tem uma intenção de escrever), não há fuga; se não há fuga (isto é, se não se projeta para uma introspecção), não há nada que mostre a própria existência ou a compreensão das coisas;
- O poema: Surge o símbolo da cinza como destino de vários outros, altamente sugestivos (o sal, o limão, o sol da pele, o trigo do corpo). Com isso, João Cabral evidencia que, as palavras que se põem no papel podem tornar-se apenas letra morta, sem qualquer ideia da vida que as teria motivado e criado. Somando-se à cinza, vêm as flores (que podem durar apenas um dia), mesmo as “flores” da moral, da pressa e do sonho. Ou seja, o valor do poema se revela quando passa o momento inicial, quando o calor da novidade dá lugar a um sereno assentar de ideias e palavras;
- O poema II: Continua-se com a ideia de contrapor a explosão do poema recém-feito (os “cavalos” e o “romper” o tempo) com a permanência duvidosa (o “sonho” que “passou, deixando fiapos” e a “preguiça”);
- O tempo e a poesia: Ligando-se ao símbolo da flor, surge as “abelhas domésticas”, que seriam as palavras que o poeta usa e convive. A segunda e terceira estrofes dessa seção estão pontuadas de parêntesis, que funcionam como discursos paralelos que se somam e ilustram a frase central, que em modo direto diz “Do dia aberto, esses lúcidos fusos retiram o fio de mel que na noite persistirá”. Ou seja, as abelhas/as palavras poéticas absorverão o dia e criarão o mel/o poema que conseguirá sobreviver à noite. Interessante apontar que há uma contraposição entre duas formas aparentes de doçura: o mel (feito pelas abelhas, então força viva e atuante de transformação) e o “açúcar do podre” (feito por extração, então bagaço passivo sem força);
- A arte poética: Explicando como deve ser um poema (similar ao que Carlos Drummond faria em “Procura da poesia”), João Cabral de Melo Neto fará quatro estrofes, duas negando, uma afirmando e uma exemplificando. A poesia não é a “forma encontrada como uma concha”, achada por acaso, como inspiração súbita da paisagem. Também não é “forma obtida em lance santo ou raro”, como a inspiração divina de uma musa inexistente (com a bela imagem das “lebres de vidro do invisível”, isto é, algo que não se vê, rapidamente some, e que dificilmente se acerta). A poesia, por fim, é revelada como a “ponta do novelo”, a se desenrolar continuamente, graças à atenção. Como imagem, surge a “aranha”, tecendo esse “fio frágil” do sentido e da expressividade, sempre correndo o risco de se romper e perder sob as “mãos enormes”, ignorantes ou descuidadas;
- A pedra: Como já dito antes, toda palavra, para João Cabral, deve ser pedra. Por isso, quatro estrofes começadas pela afirmação “É mineral” apontam a imagem de que, uma vez na forma escrita, tudo se torna concreto. O papel é concreto, “flores, plantas, frutas, bichos”, isto é, formas vivas que morrerão, mas que se conservam e duram para o além quando postas em “estado de palavra”. E mesmo as abstrações, como o “horizonte, o nome” também ganham o peso, quando se convertem em palavras. Assim, a palavra é fria e dura, e tudo pode ser posto em palavras;
- A leitura: Ligando-se à seção anterior, fecha-se o poema com uma ideia de que, se todo sonho, toda vida se pode verter em palavras, não quer dizer que tudo permanecerá. É preciso que as palavras-pedras tenham não somente peso, mas força e densidade. Dessa forma, o que aparentemente é morto, traz consigo a possibilidade de significação e vida (“Cultivar o deserto como um pomar às avessas”). Dois pomares se mostram entre parêntesis: o de árvores, que tiram a energia da terra para gerar frutos; e o “outro pomar”, de sentidos, que extraem os nutrientes das palavras maduras. E a conclusão (ou proposta de seguir) é justamente o que se faz com esses pomares: no primeiro, antes havia uma maçã, mas ela acaba e regressará a fome ou a necessidade de mais; no segundo, antes havia a palavra, mas ela de nada vale e cairá no vazio, se não se fizer o exercício (por parte do leitor) de cultivar as palavras e de extrair os sentidos não apenas superficiais da vida aparente e imediata, mas buscando os nutrientes ocultos e, por isso mesmo, duradouros.
Sim, João Cabral é exigente. Sim, João Cabral quer do leitor a visão da palavra e do peso da palavra e do valor do peso da palavra. Vendo poemas como “Tecendo a manhã”, “Catar feijão”, “Educação pela pedra”, “Graciliano Ramos”, nota-se que, em sua obra, engenhosa e de construção, é preciso saber o que se diz e, mais do que isso, saber como se diz.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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