Neste episódio, analisamos a obra de Agostinho Neto, um poeta angolano que usou a palavra como instrumento de luta pela liberdade. Em três poemas, observamos como os conceitos de Africanidade e Negritude são mobilizados como forma de afirmação da própria identidade e defesa do que se acredita. São batalhas diárias e sempre atuais, que devem ser ouvidas por todos, até que o óbvio se converta em certeza.
***
SAUDAÇÃO
A ti, negro qualquer
meu irmão do mesmo sangue
Eu Saúdo!
Esta mensagem
seja o elo que me ligue ao teu sofrer
indissoluvelmente
e te prenda ao meu Ideal
Que me faça sentir
a dor e a alegria
de ser o negro-qualquer perdido no mato
com medo do mundo ofuscante e terrível
e nos alie agora na sua busca
e me obrigue a sentar-me ao teu lado
à mesa suja dos excessos de sábado à noite
para esquecer a nudez e a fome dos filhos
e sinta contigo a vergonha
de não ter pão para lhes dar
para que juntos vamos cavar a terra
e fazê-la produzir
e me transforme no homem-número-abstracto
desconhecedor dos objectivos
na tarefa que nos consome
como o bastardo desprezado de certo mundo
nesta madrugada do nosso dia
me faça enfim
o negro-qualquer das ruas
e das sanzalas
sentindo como tu a preguiça
de dar o passo em frente
para nos ajudarmos a vencer
a inércia dos braços musculados
Esta é a hora de juntos marchamos
corajosamente
para o mundo de todos
os homens
Recebe esta mensagem
como saudação fraternal
ó negro qualquer das ruas e das sanzalas do mato
sangue do mesmo sangue
valor humano na amálgama da Vida
meu irmão
a quem saúdo!
***
CONFIANÇA
O oceano separou-me de mim
enquanto me fui esquecendo nos séculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espaço
condensando o tempo
Na minha história
existe o paradoxo do homem disperso
Enquanto o sorriso brilhava
no canto de dor
e as mãos construíam mundos maravilhosos
John foi linchado
o irmão chicoteado nas costas nuas
a mulher amordaçada
e o filho continuou ignorante
E do drama intenso
duma vida imensa e útil
resultou certeza
As minhas mãos colocaram pedras
nos alicerces do mundo
mereço o meu pedaço de pão.
***
DO POVO BUSCAMOS A FORÇA
Não basta que seja pura e justa
a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós.
Dos que vieram
e conosco se aliaram
muitos traziam sombras no olhar
intenções estranhas.
Para alguns deles a razão da luta
era só ódio: um ódio antigo
centrado e surdo
como uma lança.
Para alguns outros era uma bolsa
bolsa vazia (queriam enchê-la)
queriam enchê-la com coisas sujas
inconfessáveis.
Outros viemos.
Lutar pra nós é ver aquilo
que o Povo quer
realizado.
É ter a terra onde nascemos.
É sermos livres pra trabalhar.
É ter pra nós o que criamos
Lutar pra nós é um destino –
é uma ponte entre a descrença
e a certeza do mundo novo.
Na mesma barca nos encontramos.
Todos concordam – vamos lutar.
Lutar pra quê?
Pra dar vazão ao ódio antigo?
ou pra ganharmos a liberdade
e ter pra nós o que criamos?
Na mesma barca nos encontramos
Quem há-de ser o timoneiro?
Ah as tramas que eles teceram!
Ah as lutas que aí travamos!
Mantivemo-nos firmes: no povo
buscáramos a força
e a razão
Inexoravelmente
como uma onda que ninguém trava
vencemos.
O Povo tomou a direção da barca.
Mas a lição lá está, foi aprendida:
Não basta que seja pura e justa
a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós.
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Para mais poemas e para conhecer a vida e a obra de Agostinho Neto:
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