Neste episódio, complementando o anterior, observam-se as faces poéticas dos gatos. Transitando o gato fatal e hipnótico de Charles Baudelaire ao gato despreocupado e inocente de Fernando Pessoa, o que se monta é um animal enigmático e múltiplo. Além disso, António Gedeão e Vinícius de Moraes vêm para complementar as muitas visões e perspectivas felinas, complementando, com os três contos anteriores, as sete diferentes vidas que os gatos parecem ter.
O GATO
(Charles Baudelaire)
Vem, belo gato, em meu peito amoroso;
Recolhe as garras da tua pata,
Deixa-me entrar em teu olhar formoso
Mesclado de ágata e prata.
Quando os dedos carinhos vêm fazer
Em tua cabeça e dorso inflado,
E a minha mão se embriaga de prazer
Palpando o corpo eletrizado,
Vejo minha mulher. O seu olhar,
Tal como o teu, meu caro amigo,
É fundo e frio, como um dardo a cortar,
E da cabeça ao pé pequeno,
O ar sutil e o perfume do perigo
Nadam por seu corpo moreno.
***
“GATO QUE BRINCAS NA RUA”
(Fernando Pessoa)
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
***
POEMA DO GATO
(António Gedeão)
Quem há-de abrir a porta ao gato…
quando eu morrer?
Sempre que pode
foge prà rua
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semicerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?
***
O GATO
(Vinícius de Moraes)
Com um lindo salto
Lesto e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pega corre
Bem de mansinho
Atrás de um pobre
De um passarinho
Súbito, para
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga.
Leave A Reply