Neste episódio, trataremos de um dos temas mais abordados pela literatura de todos os tempos e lugares: o sofrimento amoroso. Iniciando por uma leitura do poema de Fernando Pessoa “Autopsicografia”, faremos um percurso de oitocentos anos em que os poetas revelam as dores de amor. Do Trovadorismo galaico-português de Martim de Guinzo e Pêro da Ponte até o barroco das cartas de Mariana Alcoforado e dos sonetos de Gregório de Matos, chegando, no século XXI, ao sertanejo universitário das canções de Marília Mendonça e de Jorge & Mateus. Como se verá, a tradição de ser coitado por amar vem de muitos séculos.
AUTOPSICOGRAFIA
(Fernando Pessoa)
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
***
(Martim de Guinzo)
Como vivo coitada, madre, por meu amigo,
ca m’enviou mandado que se vai no ferido;
e por el vivo coitada.
Como vivo coitada, madre, por meu amado,
ca m’enviou mandado que se vai no fossado;
e por el vivo coitada.
Ca m’enviou mandado que se vai no ferido,
eu a Santa Cecilia de coraçom o digo:
e por el vivo coitada.
Ca m’enviou mandado que se vai no fossado,
eu a Santa Cecilia de coraçom o falo:
e por el vivo coitada.
***
(Pêro da Ponte)
Se eu podesse desamar
a quem me sempre desamou
e podess’algum mal buscar
a quem me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
se eu pudesse coita dar
a quem me sempre coita deu.
Mais sol nom poss’eu enganar
meu coraçom que m’enganou,
per quanto mi fez desejar
a quem me nunca desejou.
E por esto nom dórmio eu,
porque nom poss’eu coita dar
a quem me sempre coita deu.
Mais rog’a Deus que desampar
a quem m’assi desamparou,
ou que podess’eu destorvar
a quem me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
se eu podesse coita dar
a quem me sempre coita deu.
Vel que ousass’en preguntar
a quem me nunca preguntou,
por que me fez em si cuidar,
pois ela nunca em mi cuidou;
e por esto lazeiro eu:
porque nom posso coita dar
a quem me sempre coita deu.
***
CARTAS PORTUGUESAS
(Sóror Mariana Alcoforado)
“Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o causa. Há de então este afastamento, para o qual a minha dor, por mais subtil que seja, não encontrou nome bastante lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos onde já vi tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de alegria, que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há? Ai!, os meus estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes restam, e chorar é o único uso que faço deles, desde que soube que te havias decidido a um afastamento tão insuportável que me matará em pouco tempo.”
***
SEGUNDA IMPACIÊNCIA DO POETA
(Gregório de Matos)
Cresce o desejo, falta o sofrimento,
Sofrendo morro, morro desejando,
Por uma, e outra parte estou penando
Sem poder dar alívio a meu tormento.
Se quero declarar meu pensamento,
Está-me um gesto grave acobardando,
E tenho por melhor morrer calando,
Que fiar-me de um néscio atrevimento.
Quem pertende alcançar, espera, e cala
Porque quem temerário se abalança,
Muitas vezes o amor o desiguala.
Pois se aquele, que espera sempre alcança,
Quero ter por melhor morrer sem fala,
Que falando, perder toda esperança.
***
AUSÊNCIA
(Felipe de Paula, Hugo Henrique e Juliano Tchula. Intérprete: Marília Mendonça)
Sei bem
O que te faz bem, eu sei
Mas no fundo eu já tentei
Não faltou coragem
É, uma hora eu ia me tocar
Que você não vai mais voltar
Não receber mensagem
Também é mensagem
Sei
Que o pra sempre virou pó
E na cabeça deu um nó
Mas eu tô bem consciente
Mas amei
Amei sozinha, mas por dois
Me conformei que agora, e não depois
Vou ter que seguir em frente
Preocupa não
Que eu não vou bater no seu portão
Preocupa não
Que não vai ver mais o meu nome em nenhuma ligação
Preocupa não
Que eu vou tomar vergonha na cara
Preocupa não
Pra um bom entendedor, meia ausência basta
***
DE TANTO TE QUERER
(Jorge Barcelos. Intérpretes: Jorge & Mateus)
Larga tudo e vem correndo
Vem matar minha vontade
Já faz tempo que eu tô sofrendo
Mereço um pouco de felicidade
Larga tudo e vem correndo
Pra eu mergulhar no teu sorriso
Me arranca desse inferno
Me leva pro seu paraíso
Eu não desisto do que eu quero
Mas não me desespero
Te espero
Na tarde quente ou madrugada fria
Na tristeza ou na alegria
Ficar sozinho não rola
Mas amor não se implora
Nem se joga fora
O amor a gente conquista
E não há quem desista
Se o coração chora
Chora com vontade de te ver
Chora com saudade de você
Chora às vezes eu nem sei por que
Deve ser de tanto te querer
De tanto amar você
Comment
Adorei. Vou prestar mais atenção nas letras das músicas sertanejas. Mas fiquei pensando …, ficaram muito mais interessantes quando declamadas. Fica a dica.