Na passagem de ano, o símbolo do encerramento de um ciclo e transição para outro obedece o próprio caminhar da vida. Há a mudança de ano, então algo parece modificar-se dentro de si, pelo menos numa renovação de esperança.
Uma das poetas que mais desenvolveu essa temática das transformações, da transitoriedade da vida e de tudo, foi Cecília Meireles. Se realiza a evocação da saudade, cantando um resgate das coisas idas, também há uma projeção a um futuro incerto, em que o desconhecido é aceito como parte do universo ao qual todos pertencem. No livro O estudante empírico (com poemas feitos entre 1959 e 1964, ano da morte da autora), essa busca por compreender vai se tecendo em cada poema, revelando que há uma lição em tudo que se vive, da mesma forma que é preciso saber evoluir e superar-se.
Sem mais, vamos a dois deles:
O ESTUDANTE EMPÍRICO[1]
(Cecília Meireles)
Com as minhas lições bem aprendidas
Com as minhas lições bem aprendidas,
com os meus exercícios bem-feitos,
estudante empírico,
autodidata[2] aplicado,
tenho todos os sofrimentos aceitos
pela minha e por outras vidas.
.
Com o peso da minha humildade,
montanha enorme nos meus ombros,
estudante empírico,
autodidata aplicado,
vou com meus olhos de vastos assombros
pelas ruas novas de nova Cidade.
.
Meu nome não sabes, nem é necessário,
e de família e nascimento,
estudante empírico,
autodidata aplicado,
ficaram os dados perdidos no vento,
aéreas letras de registro vário.
.
Minha aprendizagem é uma calma conquista,
para as provas de qualquer instante:
estudante empírico,
autodidata aplicado,
em alma e corpo sou memória de diamante,
vida sem pálpebra, disciplinada vista.
.
Mas decerto o que aprendo é meu somente,
meu patrimônio incomunicável, sem herdeiro;
estudante empírico,
autodidata aplicado,
professor meu sou e único aluno verdadeiro,
e, a minha, é a escola comum da humana gente.
.
Apenas o meu esforço ultrapassa noite e dia,
torna-me em aula constante o tempo do mundo,
estudante empírico,
autodidata aplicado,
desvalido[3], em mim mesmo, e para além, me aprofundo,
para o curso já sem palavras da sabedoria.
.
.
.
.
Hoje desaprendo o que tinha aprendido ontem
Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem
E que amanhã recomeçarei a aprender.
Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera[4]:
todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas.
.
Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência
dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo.
.
E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de riso e pedras.
Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer.
.
De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro,
minha verdade, sem troca, sem equivalência nem desengano
.
permanece constante, obrigatória, livre:
enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender.
—
[1] que se baseia na experiência concreta e na prática, o contrário de teórico; [2] aquele que aprende sozinho; [3] desprotegido; [4] breve, passageira, de curta duração
***
Os dois poemas versam sobre a aprendizagem e o uso que se dá a isso. O primeiro obedece a uma estrutura de estrofes de seis versos, em que os dois centrais repetem-se como uma pausa para enfatizar a prática que é defendida, e os demais formam-se segundo rimas interpoladas. Cada estrofe também sintetiza uma frase, como se fossem etapas desse modo de aprender as lições.
Vale observar a repetição em refrão, cuja sonoridade se mantém primeiro no “e” (Estudante Empírico) e depois no “a” (Autodidata Aplicado), como símbolo desse compromisso em aprender sempre, aplicando-se no que se quer estudar e tendo autonomia, não aguardando que outros lhe indiquem caminhos.
Em cada estrofe, então, sucedem-se os passos da voz poética que busca se autoconstruir, ora internamente, ora voltando-se ao externo. De início, já surge esse “estudante empírico” que, tendo aprendido e feito seus exercícios, tem a consciência de aceitar os sofrimentos (seus e das “outras vidas”, podendo-se interpretar tanto como o das gerações que o antecederam e que fazem parte de quem ele é, quanto o de seus contemporâneos, com os quais interage no presente).
Após essa constituição interna, chega o momento dele agir. Mesmo mantendo-se humilde, com o peso que isso gera, conserva os “olhos de vastos assombros”, para poder ver o desconhecido das “ruas novas da nova Cidade”.
Voltando-se ao sujeito, Cecília desprende as amarras do “nome” familiar, ou seja, das tradições e linhagens. Esse estudante é um novo ser, não um eco do que seus pais e avós foram. Tais registros são “dados perdidos” e “aéreas letras”.
E contrapondo-se ao “meu nome” da terceira estrofe, vem a “minha aprendizagem” da quarta estrofe. Somando-se à humildade, surge essa “calma conquista” de todas as provas, unindo corpo e alma (material e espiritual), torna-se as belas metáforas de “memória de diamante” (que não se quebra), “vida sem pálpebra” (que não dorme) e “disciplinada vista” (que não se perde).
As duas últimas estrofes, como forma de conclusão do poema, questionam o destino de toda a aprendizagem – “o que aprendo é meu somente” –, como se todo o conhecimento adquirido não pudesse ser transmitido, uma vez que cada pessoa é única, de modo que se declara que “professor meu sou e único aluno verdadeiro”. Aqui vale mencionar que isso não é um louvor ao individualismo, mas sim à conscientização de que, se todos compartilham a “escola comum da humana gente”, que é uma “aula constante o tempo do mundo”, é da responsabilidade de cada sujeito abrir-se para o conhecimento, aplicar-se em compreender o que é o mundo e o outro.
O poema se encerra com esse “curso já sem palavras” que é a sabedoria, pois o estudante empírico sabe que, para realmente aprender, não é no meio das palavras e discursos (muitas vezes sufocantes e impositivos), é no silêncio, cada um consigo mesmo, processando e sendo o próprio professor e aluno.
A lição que fica espelha-se no segundo poema, que mostra a renovação necessária para que se possa evoluir e avançar. Na obra de Cecília Meireles, o movimento de aprender-desaprender-reaprender existe para evidenciar o fato de que nada é cristalizado e imutável. Por isso que todos os dias desfaz-se e reconstrói-se. Conforme o poema aponta, somos uma “frágil escola” nunca concluída, retomando a ideia do poema anterior de que é dentro de cada um que o aprendizado acontece de modo contínuo.
Surge, então, nas três últimas estrofes, o símbolo da verdade que cada um possui e “pela qual deve morrer”. Logicamente que Cecília não defende a crença cega numa verdade (geralmente imposta por outros), pois isso contrariaria o que o poema vem tecendo. O que se propõe é essa verdade clara, “constante, obrigatória, livre”: “enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender”.
Para a poeta, não existe uma verdade concreta, o que há é a busca incessante pela verdade. E é preciso renovar-se, enfrentar o desconhecido para que mais se possa conhecer a si mesmo. Então que a passagem de ano seja momento de compreender o que passou e unir forças para enfrentar o que virá, com a consciência de que a verdade é uma busca e que, como a própria Cecília aponta, “a vida só é possível reinventada”.
E pronto!
Feliz Ano Novo!
por Saulo Gomes Thimoteo
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