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O operário em construção

dezembro 13, 2019

Hoje é Dia do Pedreiro, uma das profissões mais antigas e que, afinal, todos devem prestar homenagem, pois das ações dele derivam as casas e prédios, pontes e caminhos. É a mão dele que faz, mesmo que haja antes o projeto do arquiteto, a estrutura do engenheiro, ou seja, as ideias de nada valem se não há aquele que as põe no concreto (nos dois sentidos).

Por isso, em um dos poemas mais conhecidos de Vinícius de Moraes, “O operário em construção”, escrito em 1959, mostra-se o valor que existe em um sujeito, quando descobre o seu valor e a sua força. Por entre comparações bíblicas e associações alegóricas, o que se mostra é como se constrói a autoconsciência.

Sem mais, vamos a ele:

OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO

(Vinícius de Moraes)

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:

– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.

E Jesus, respondendo, disse-lhe:

– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

Lucas, cap. V, vs. 5-8.

 

Era ele que erguia casas

Onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as casas

Que lhe brotavam da mão.

Mas tudo desconhecia

De sua grande missão:

Não sabia, por exemplo

Que a casa de um homem é um templo

Um templo sem religião

Como tampouco sabia

Que a casa que ele fazia

Sendo a sua liberdade

Era a sua escravidão.

 

De fato, como podia

Um operário em construção

Compreender por que um tijolo

Valia mais do que um pão?

Tijolos ele empilhava

Com pá, cimento e esquadria

Quanto ao pão, ele o comia…

Mas fosse comer tijolo!

E assim o operário ia

Com suor e com cimento

Erguendo uma casa aqui

Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente

Um quartel e uma prisão:

Prisão de que sofreria

Não fosse, eventualmente

Um operário em construção.

 

Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário:

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário.

De forma que, certo dia

À mesa, ao cortar o pão

O operário foi tomado

De uma súbita emoção

Ao constatar assombrado

Que tudo naquela mesa

– Garrafa, prato, facão –

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário,

Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela

Banco, enxerga, caldeirão

Vidro, parede, janela

Casa, cidade, nação!

Tudo, tudo o que existia

Era ele quem o fazia

Ele, um humilde operário

Um operário que sabia

Exercer a profissão.

 

Ah, homens de pensamento

Não sabereis nunca o quanto

Aquele humilde operário

Soube naquele momento!

Naquela casa vazia

Que ele mesmo levantara

Um mundo novo nascia

De que sequer suspeitava.

O operário emocionado

Olhou sua própria mão

Sua rude mão de operário

De operário em construção

E olhando bem para ela

Teve um segundo a impressão

De que não havia no mundo

Coisa que fosse mais bela.

 

Foi dentro da compreensão

Desse instante solitário

Que, tal sua construção

Cresceu também o operário.

Cresceu em alto e profundo

Em largo e no coração

E como tudo que cresce

Ele não cresceu em vão

Pois além do que sabia

– Exercer a profissão –

O operário adquiriu

Uma nova dimensão:

A dimensão da poesia.

 

E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.

 

E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia sim

Começou a dizer não.

E aprendeu a notar coisas

A que não dava atenção:

 

Notou que sua marmita

Era o prato do patrão

Que sua cerveja preta

Era o uísque do patrão

Que seu macacão de zuarte

Era o terno do patrão

Que o casebre onde morava

Era a mansão do patrão

Que seus dois pés andarilhos

Eram as rodas do patrão

Que a dureza do seu dia

Era a noite do patrão

Que sua imensa fadiga

Era amiga do patrão.

 

E o operário disse: Não!

E o operário fez-se forte

Na sua resolução.

 

Como era de se esperar

As bocas da delação

Começaram a dizer coisas

Aos ouvidos do patrão.

Mas o patrão não queria

Nenhuma preocupação

– “Convençam-no” do contrário –

Disse ele sobre o operário

E ao dizer isso sorria.

 

Dia seguinte, o operário

Ao sair da construção

Viu-se súbito cercado

Dos homens da delação

E sofreu, por destinado

Sua primeira agressão.

Teve seu rosto cuspido

Teve seu braço quebrado

Mas quando foi perguntado

O operário disse: Não!

 

Em vão sofrera o operário

Sua primeira agressão

Muitas outras se seguiram

Muitas outras seguirão.

Porém, por imprescindível

Ao edifício em construção

Seu trabalho prosseguia

E todo o seu sofrimento

Misturava-se ao cimento

Da construção que crescia.

 

Sentindo que a violência

Não dobraria o operário

Um dia tentou o patrão

Dobrá-lo de modo vário.

De sorte que o foi levando

Ao alto da construção

E num momento de tempo

Mostrou-lhe toda a região

E apontando-a ao operário

Fez-lhe esta declaração:

– Dar-te-ei todo esse poder

E a sua satisfação

Porque a mim me foi entregue

E dou-o a quem bem quiser.

Dou-te tempo de lazer

Dou-te tempo de mulher.

Portanto, tudo o que vês

Será teu se me adorares

E, ainda mais, se abandonares

O que te faz dizer não.

 

Disse, e fitou o operário

Que olhava e que refletia

Mas o que via o operário

O patrão nunca veria.

O operário via as casas

E dentro das estruturas

Via coisas, objetos

Produtos, manufaturas.

Via tudo o que fazia

O lucro do seu patrão

E em cada coisa que via

Misteriosamente havia

A marca de sua mão.

E o operário disse: Não!

 

– Loucura! – gritou o patrão

Não vês o que te dou eu?

– Mentira! – disse o operário

Não podes dar-me o que é meu.

 

E um grande silêncio fez-se

Dentro do seu coração

Um silêncio de martírios

Um silêncio de prisão.

Um silêncio povoado

De pedidos de perdão

Um silêncio apavorado

Com o medo em solidão.

 

Um silêncio de torturas

E gritos de maldição

Um silêncio de fraturas

A se arrastarem no chão.

E o operário ouviu a voz

De todos os seus irmãos

Os seus irmãos que morreram

Por outros que viverão.

Uma esperança sincera

Cresceu no seu coração

E dentro da tarde mansa

Agigantou-se a razão

De um homem pobre e esquecido

Razão porém que fizera

Em operário construído

O operário em construção.

 

***

 

Inicialmente, o título se revela em uma dupla significação: se o local em que o operário fica, usualmente, é a construção, o que ocorre no poema é a alegoria do operário não mais construindo algo, mas sim se autoconstruindo. Em versos de sete sílabas poéticas, e rimas relativamente regulares nos versos pares, o ritmo que se apresenta se assemelha aos antigos cancioneiros e à literatura de cordel.

Com relação ao sentido que se constrói, as duas estrofes iniciais situam o operário como personagem em uma rotina mecânica e automatizada, sem sequer pensar sobre o que se faz e como, mesmo sendo livre, estava prisioneiro. Mas aí, na terceira estrofe, se começa uma mudança, pois surge o questionamento e a ampliação do próprio conhecimento. Quando descobre que tudo que existe passou pelas suas mãos, ele sendo aquele que constrói a tudo (“vidro, parede, janela, / casa, cidade, nação”), do mínimo ao total.

O fato de compreender a isso faz com que o “humilde operário” se torne mais singular do que todos os “homens de pensamento”, pois alia-se à descoberta concreta do seu valor a dimensão da poesia, ou seja, o poder de ver a beleza e a grandiosidade em tudo, inclusive em sua “rude mão de operário”.

Após esse processo de autoconsciência, Vinícius expande para alcançar o coletivo, fazendo com que o operário compartilhe de sua descoberta com os outros colegas de profissão e vida. (Algo que se pode assemelhar à alegoria da caverna de Platão, como se os demais operários vivessem ainda vendo apenas sombras e o personagem do poema conseguisse “ver” o mundo real). E isso fica ilustrado a partir da palavra “Não!”, continuamente dita pelo operário, como a fuga da passividade. Além disso, surge o “patrão”, sendo que cada sacrifício e quebra do operário possui como contraponto uma benesse do patrão.

Esse personagem caracteriza-se como um antagonista (um vilão), que inicialmente vê em operários da intriga um bom instrumento para “convencer” aquele operário a parar com tais pensamentos e descobertas. Mesmo sofrendo toda forma de violência, o operário se mantém firme, fazendo com que o patrão decide dobrá-lo de outra forma. Nesse momento, fazendo uma associação com a epígrafe bíblica da tentação de Cristo feita pelo Diabo, o poeta coloca o patrão oferecendo tudo ao operário se ele “o adorar” e abandonar as convicções. E como Cristo repeliu o Diabo, também o operário conseguiu vencer e conservar sua integridade conquistada, por compreender o seu próprio papel social na cidade que lhe . (“Mentira! – disse o operário – / Não podes dar-me o que é meu.”).

Surge, então, o momento final do poema, com a presença do silêncio. No caso, esse silêncio é a espécie de lembrança dos trabalhadores que lutaram e sofreram antes. Torna-se um silêncio que brada por se fazer ouvir. E esse operário, por ter a consciência de quem é e de seu lugar na construção de tudo, agiganta-se, tornando-se mais do que ele e surgindo como voz coletiva e histórica que se constrói criticamente.

 

Esse poema tem 60 anos. Ainda faz sentido e ainda mostra como é necessário, cada vez mais, os operários construírem-se e compreenderem quem são.

 

E pronto!

por Saulo Gomes Thimoteo

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Literatura brasileira

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