Florbela Espanca desenvolve sua poesia, especialmente, em torno do amor e da busca que todo amor precisa. Canta suas mágoas e aspirações, acabando por construir pequenos palácios poéticos em forma de soneto. Se Camões, Bocage e Antero seriam os grandes sonetistas portugueses dos séculos XVI, XVIII e XIX, Florbela seria a voz do século XX, dificilmente tendo alguém que tão bem expressasse as incertezas e inquietudes humanas em catorze versos.
Hoje faz 125 anos de seu nascimento e 89 de sua morte, e, em sua homenagem, que se leia o seu soneto intitulado “Desejos vãos”, no qual não aparece a temática amorosa, mas sim a de uma projeção do eu para vários seres. Se inicialmente se visualizam os elementos bons de tais desejos de transformação, logo na sequência nota-se que também não seriam de todo benéficos…
Sem mais, vamos a ele:
“DESEJOS VÃOS”
(Florbela Espanca)
Eu q’ria ser o Mar d’altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu q’ria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!
Eu queria ser o sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu q’ria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!
Mas o Mar também chora de tristeza…
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!
E o Sol altivo e forte, ao fim dum dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras… essas… pisa-as toda a gente!…
***
Inicialmente, vale mencionar que o uso do “q’ria” funciona como estratégia para que a métrica de 10 sílabas se mantenha. Assim, ao invés de se ler “que-ri-a”, com três sílabas, lê-se “q’ri-a”, com duas. Coisas de poetas e de jogar com as palavras para seguirem seu ritmo…
Sobre a estrutura do poema, nota-se que há dois momentos: os desejos de ser outra coisa (o Mar, a pedra, o sol, a árvore), que se sucedem a cada dois versos, todos começados com “Eu queria” e que ocupam as duas primeiras estrofes do soneto; e a constatação de que todos esses desejos são vãos, isto é, inúteis e vazios, contrapondo cada um a uma interpretação negativa.
O primeiro desejo recai sobre o Mar, posto com maiúscula como uma personificação “altiva”, e que tem “a vastidão imensa” como sua natureza. Esse desejo vem exposto principalmente pelo Mar se apresentar como um ser inabalável, que “ri e canta”. Como forma de equilíbrio, há o desejo de ser pedra, e não pensar, mas que conserva sua natureza “rude e forte”, também ela inabalável, por não se deixar quebrar.
A segunda estrofe também fará o mesmo movimento de contrapor um desejo de algo grandioso e de algo terreno e perene. Começa pelo sol, que traz a sua “luz intensa”, e que se estende e atinge a todos, mesmo os mais humildes e sem sorte. Depois, projeta-se na árvore, “tosca e densa”, ou seja, segura e firme, rindo-se do mundo por ver todos passarem e morrerem, menos ela.
Os pares que se aproximam (Mar e sol, por um lado, e pedra e árvore, por outro) também revelam diversas maneiras de se relacionar com o mundo e os outros: o Mar ri por sua grandeza; a pedra fecha-se ao que vem de fora; o sol, por ser tão alto, torna-se um bem a todos; a árvore desdenha de tudo, mantendo-se firme no que é. Tudo isso se justifica como estados de ser que Florbela desejaria reproduzir, como se fossem metáforas de como queria viver.
Eis que a terceira e quarta estrofes quebram tal expectativa (introduzidas pelo “Mas”), apresentando ações desses quatro seres que, projetados com uma face humanizada, revelam as formas de tristeza que neles haveria. O Mar “chora”, como algo consolidado num ideal português – e que Fernando Pessoa cantaria em seu “Mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal”. As árvores, num processo de personificação, têm seus galhos transformados em braços que se erguem aos céus, em preces e crenças. Da mesma forma, o Sol agoniza ao fim de cada dia, criando as “lágrimas de sangue” no seu encontro com o mar. E as pedras, mesmo fortes, são pisadas por todos.
Importante perceber a diferença de tom entre as duas partes. Se na primeira há certa resolução pontual nos desejos e vontades de ser tais elementos, na segunda as reticências vão criando um prolongamento sugestivo de que, talvez, nada seja tão certo e exato.
Cria-se, então, um espelhamento negativo do que antes seria grandeza e força, mostrando que, mesmo o que aparenta firmeza, pode carregar lances tristes. Como a própria Florbela possuía dentro de si.
Além disso, vê-se a inutilidade de se desejar ser o que não se é, inclusive por enxergar algo benéfico no outro (querer ser a pedra, por ser forte). Afinal, ao se analisar de modo mais amplo, percebe-se que a comparação jamais seria de todo positiva (pois as pedras são pisadas por toda a gente…)
Melhor que se perder em desejos vãos é compreender quem somos e agir pela experiência adquirida nas relações com os outros.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimoteo
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