O Dia da Consciência Negra foi instituído em 2003 e busca trazer à luz algo que, por diversos motivos, se dissimula: as pessoas trazidas à força da África para trabalhar como escravos e que ainda se fazem presentes. São os ecos que ressurgem em seus descendentes. São parte da história, e se eles têm o direito de serem reconhecidos, cabe a todos o dever de saber em que bases a sociedade brasileira foi fundada.
Felizmente, muitas vozes se vão elevando, no sentido de mostrar caminhos da consciência histórica do papel dos negros e da afirmação no presente. Dentre elas, há Conceição Evaristo, com uma obra especialmente pautada pela busca em prol da identidade enquanto negra e enquanto mulher. No poema “Vozes-mulheres”, publicado no livro Poemas da recordação e outros movimentos, o que se vai construindo é uma sequência de gerações, cada uma com grande força expressiva e sonora, no contexto de suas lutas e projeções futuras.
Sem mais, vamos a ele:
VOZES-MULHERES
(Conceição Evaristo)
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
***
Desde o título se pontua, serão vozes definidas como mulheres, no plural. As estrofes se vão sucedendo como miçangas, cada uma representando uma geração, não somente dessa família, mas tornando-se símbolo de toda a coletividade.
A primeira voz, na figura da bisavó, remete a meados do século XIX, nos finais dos navios do tráfico negreiro (com a Lei Eusébio de Queirós promulgada em 1850). Ela é evocada como criança vindo nos “porões do navio”, ecoando os “lamentos de uma infância perdida”. Nesse sentido, mostra-se a primeira de uma sucessão de opressões extremas, sendo o completo arrancar de seu contexto original, perdendo-se de toda conexão e vindo a nova terra, inclusive tratada não como criança, nem sequer como indivíduo pleno, mas como mercadoria.
A segunda voz, na figura da avó, produz-se num possível momento já da Lei do Ventre Livre (de 1871), ou seja, não seria escrava. Mas a nova opressão seria a de ter obediência “aos brancos-donos de tudo”. Dessa forma, ainda lhe é negada uma plena liberdade, pois está posta como objeto desses “donos”.
A terceira voz, da mãe, localiza-se já no século XX, e constrói-se a partir de um eco “baixinho” de revolta, ou seja, há um prenúncio de conscientização e desejo de reparação histórica (pelo passado de escravidão, pela opressão dos donos de tudo). Embora já haja uma liberdade, não há uma independência, pois seu espaço é o “caminho empoeirado rumo à favela”, à margem, e restrito ao “fundo das cozinhas alheias” e “debaixo das roupas sujas dos brancos”. Importante ressaltar os termos de rebaixamento aqui colocados, pois é ao “fundo” e “debaixo”.
Colocando-se a própria voz, na quarta estrofe, Conceição Evaristo insere-se como parte integrante dessa conexão, que tem na poesia, nas palavras, ainda que “perplexas”, ainda que com “rimas de sangue e fome”, esse momento de esperança de virada.
Nas duas estrofes finais, seguindo no encadeamento histórico, surge a projeção ao futuro, na figura da filha. É ela que poderá recolher “todas as nossas vozes”. Pois os ecos das mulheres anteriores, embora partindo de suas vozes, não foram plenamente ouvidas, antes foram “mudas caladas engasgadas”. É na filha, afinal, que está a junção da fala (que também se produziu na “minha voz”) com o ato. Será o resgate (o ontem), a conscientização (o hoje) e a ação efetiva (o agora). Assim, é na perspectiva da voz da filha que se fará ouvir a ressonância da vida-liberdade. Assim é que Conceição Evaristo produz uma literatura que ao mesmo tempo que é resgate do passado de lutas, é esperança de futuro de união.
A Consciência Negra deve ser algo continuamente cultivado, lembrado e evocado. Reconhecer os apagamentos históricos impostos aos escravos, as marginalizações aos descententes de escravos, e a necessidade da igualdade atual, especialmente no tratamento humano e social.
Ainda há a intolerância, o preconceito, o racismo, mas é pelo diálogo, empatia e pela compreensão do outro, com sua história e bagagem, desejos e traumas, que podemos avançar como sujeitos ativos e integrados a uma sociedade.
Axé!
por Saulo Gomes Thimoteo
2 Comments
A falta de um debate contínuo sobre a necessidade de se fazer um resgate desse passado de sofrimentos e lutas dá origem a essa ausência de empatia com a causa, o preconceito e o não entendimento da urgência de se dar aos descendentes de escravos a condição de plena cidadania.
Gratidão pela partilha e por manter vivo esses diálogos no agora.