Vinícius de Moraes fez 106 anos. Chamado de “Poetinha”, foi um dos mais famosos poetas brasileiros, por ser compositor de músicas consagradas (como “Se todos fossem iguais a você”, “Garota de Ipanema” ou “Aquarela”), por ter sido diplomata e levar o nome do Brasil, e por também conectar a alta cultura com o saber popular e até mesmo infantil (representado, especialmente, nas músicas do álbum Arca de Noé, com sucessos como “O pato”, “São Francisco” ou “A Casa”).
Nesse jogo, mostrando que na literatura qualquer objeto ou ação se pode tornar material poético de alta qualidade, surge o soneto “Não comerei da alface a verde pétala”, que nada mais apresenta do que a recusa do poeta em comer salada.
Sem mais, vamos a ele:
“NÃO COMEREI DA ALFACE A VERDE PÉTALA”
(Vinícius de Moraes)
Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias[1] desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem mais aprouver[2] fazer dieta.
Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas pêras e maçãs, deixo-as ao esteta[3]
Que acredita no cromo[4] das saladas.
Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro[5]; deem-me feijão com arroz
E um bife, e um queijo forte, e parati[6]
E eu morrerei, feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.
—
[1] no contexto do poema, o formato de uma rodela fina; [2] agradar; [3] pessoa que admira a arte; [4] cores; [5] indivíduo que come de tudo; [6] cachaça.
***
Como já mencionado em análises de sonetos anteriores, uma das principais figuras de linguagem utilizadas pelos poetas é o hipérbato, isto é, a inversão das palavras fora de sua estrutura normal da sintaxe (sujeito + verbo + complemento do verbo). Nesse sentido, logo os dois primeiros versos, se lidos na “ordem correta” ficariam: “Não comerei a pétala verde da alface nem as hóstias desbotadas da cenoura”. A razão para isso, se é que precisa haver razão, pode ser tanto pela questão de rimas, de métrica, do ritmo ou de criar um estranhamento.
Pode-se imaginar Vinícius sentado à mesa, diante de um belo prato de alface e, com um tom muito mais formal, grandioso e poético que a situação exigiria, cria um soneto para fazer graça. Por isso o poeta enxerga não somente uma folha de alface, mas uma “verde pétala”, como se fosse flor, não somente cenouras cortadas em rodelas, mas “hóstias desbotadas”. Aliás, na sequência da primeira estrofe, ele se contrapõe àqueles que comeriam, definindo as saladas como “pastagens” e deixando-as às manadas de gado e aos que gostam de dieta.
Referindo-se a frutas com certa tendência a fazer sujeira (como cajus e mangas), o poeta se apresenta como alguém contrário a ser um “esteta” e, até mesmo, desconectado do que há de real. Por isso que mesmo essas frutas “pouco elegantes” são as que ele prefere, opondo-se aos outros, que desejam uma arte mais elevada (até mesmo em suas saladas multicores).
Se as duas primeiras estrofes constituem-se, cada uma, como frases em que o poeta afirma-se pelo que “deixa” aos outros, por não se interessar. Nos dois tercetos seguintes, Vinícius os divide em três etapas. Na primeira (versos 9 a 11), novamente se define primeiro por uma negação – não nasceu como ruminante nem como roedor, de modo que não vê razão para comer o que essas espécies comem – e depois por uma afirmação – nasceu “omnívoro”, ou seja, apto a comer de tudo. Na segunda (versos 11 e 12), surge o pedido real do que se deseja comer, sendo todos alimentos triviais e simples. Na terceira (versos 13 e 14), surge a conclusão do poeta, que não vê uma desvantagem em “morrer do coração” (aqui entendido no sentido literal e também metafórico) pelos alimentos não saudáveis que come, pois assim terá vivido feliz por comer o que queria.
De uma simples folha de alface, eis que Vinícius de Moraes retira uma filosofia de que comer o que lhe faz feliz, mesmo que lhe encurte a vida, faz a breve existência mais saborosa.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimoteo
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