Um dos maiores gênios brasileiros do humorismo do século XX foi Chico Anysio, que hoje completaria 88 anos. Criador de mais de duzentos personagens, como o Professor Raimundo, Alberto Roberto ou Pantaleão Pereira Peixoto, a construção de diálogos e de situações cômicas partiam, geralmente, de acontecimentos triviais e acabavam por fechar com algo absurdo ou estranho que causava humor.
Além disso, Chico Anysio também produziu romances e contos, que revelam uma face . No conto “Alambique”, presente em O tocador de tuba (1977), há a construção de um personagem, Severino, que vai contando sua vida de empregado de uma fazenda produtora de cachaça.
Sem mais, vamos a ele:
ALAMBIQUE[1]
(Chico Anysio)
A gente não é de ferro. Eu nunca fui homem de querer me mostrar, de bancar que é especial, o que a folhinha não marca, não sou um desses cabras cheios de nove horas que a gente cansa de ver e de encontrar por aí, por esse mundo de Deus. Sou um homem simples. Nunca fiz uma exigência, mesmo porque eu sei reconhecer o meu lugar. Não, doutor. Eu não me meto a aparentar o que eu não sou. Muitas vezes tive chance, tive a oportunidade de comer ali na sala, dijunto do meu patrão e excelentíssima família. Muitas vezes. Não foi uma nem duas, foi uma porção. Quando, por exemplo, eu fui levar a notícia do milésimo barril do ano. O patrão foi generoso, foi muito amável e gentil. Parecia até que eu era gente igual a ele, não um mero empregado, um cidadão subalterno, como é o que eu sou de fato.
– Entre, Severino, venha. Sente aqui na mesa e venha comer com a gente.
Sim, senhor. Foi mesmo assim, como eu estou dizendo: “se assente aqui com a gente.” Não só me convidou como, unindo o gesto à palavra, ele mesmo arredou a cadeira assim com o pé para eu ir e me assentar, como faz com os amigos que é doutor que visita ele e participa da mesa. Pois arredou a cadeira, se rindo, e disse em alto e bom som:
– Se assente aqui, Severino, venha e coma com a gente.
Eu me sentei? Não senhor, doutor, não me sentei, não. Eu só disse foi obrigado, não estou com fome, não senhor, e no passo em que tinha chegado fui saindo porta afora. Fosse outro fazia o quê? Sentava ou não sentava? Ora, se! Se assentava, bem do seu, já pegava intimidade, me passe aí a farofa, bota mais arroz aqui. Eu, não.
– Não estou com fome, obrigado, vim-me embora.
Podia bem me assentar pois se ele tinha convidado. Me assentava e usufruía da mesa e da intimidade da família e do patrão. Podia ou não podia? Podia demais, que ele até tinha arredado a cadeira com o pé, como faz para os amigos. Disso eu me gabo, doutor: nunca abusei. Abuso é coisa que considero um destempero. Meu lugar é no jota? Não vou ao bê nem ao cê, fico quieto lá no jota, que lá é o meu lugar. Eu sei me reconhecer, sei onde é o meu canto. Sei e não arredo dele. Meu serviço eu faço direito. Ah, isso faço. Se não faço melhor é porque não posso. E vim lá de baixo, eu vim lá do comecinho. Já trabalhei no eito, doutor, no corte, eu comecei foi do zero. Se hoje eu sou o cabra que toma conta dos barris, se hoje eu tenho um posto que conta os barris que saem, eu cheguei a esse ponto foi pelas minhas virtudes, não foi por favor nenhum. Quem me botou nesse posto foi o meu trabalho, doutor. Não foi por bajulação nem foi por protegimento. Estou aqui por merecer. É vitória ou não é? Tinha cabra melhor que eu pra cavar uma cova de cana? Pergunte. Pergunte a qualquer um que trabalhe aqui na usina se teve no eito um cabra só que fosse melhor do que Severino Arruda. Quando passei pro corte fiquei só dois anos lá. E nem chegou a ser dois inteiros. Antes de fazer os dois anos eu já tinha progredido, já era chefe de equipe, como o patrão nomeava. Eu fiquei por nove anos trabalhando no alambique. Fiz tudo que foi qualidade de serviço, fiz de tudo. Nunca faltei um dia ao trabalho. Um dia, eu não faltei. Nem quando tive aquela febre que Mãe Constância garantia que era maleita. Se era ou se não era, nem me importa. Com 39 de febre, me cozendo[2] por dentro, morto de frio, tremendo — e era pleno meio-dia — eu estava no alambique, sacudindo bagaço de cana na carroceria do caminhão, que era esse o meu serviço, na ocasião da febre que Mãe Constância garante que era febre de maleita. Tomei conta do dinheiro quatro meses bem contados, quando o patrão viajou com a família pela Europa. Quem pagava, recebia, fazia e acontecia era eu, doutor. Ele chegou muito bem, fez a prestação de contas, faltou um tostão? Um tostão furado, faltou? Pergunte pra ele. Além de tudo bater direitinho, só ouvi elogios.
– Muito bem, Severino, nunca as contas andaram tão certas.
Foi o que o patrão me disse. Nunca as contas andaram tão certas. Esperei, não vou negar, que ele me desse um agrado, um dinheirinho de ajuda pelo serviço que eu tinha feito de graça e que nem fazia parte da minha obrigação. Ele não deu. Disse só muito bem, Severino, nunca as contas andaram tão certas, e ficou por isso mesmo. Eu fiquei aborrecido? Nem um pouco. Tudo que foi empregado da usina achou um despropósito ele não me dar uma recompensazinha pelo que eu tinha feito, mas eu nem me importei. Fiz por querer, doutor, fiz pra ajudar, pra mostrar que estou no jota, mas tenho competência pra chegar ao tê ou ao vê. Li, isso, doutor. Eu fiz de tudo nessa usina. De tudo que o senhor possa imaginar. Até ajudei a consertar a máquina que se quebrou na virada do caminhão de Esau. Eu, que nunca tinha botado a mão numa chave-inglesa, fiquei uma semana inteira trancado no galpão junto com os dois homens que vieram lá do Rio, e eles mesmos disseram ao patrão que sem Severino Arruda tudo tinha sido ruim, tudo muito mais difícil, que eu é que tinha sido o facilitador das coisas. Ele se virou pra mim e, na frente dos cariocas, foi falando:
– Muito bem, Severino, você é um homem importante aqui na minha usina, muito bem e muito obrigado.
Não deu nem um dinheirinho, mas disse “muito obrigado”. Eu sou assim, doutor. Cara feia para o trabalho, eu nunca fiz e nem faço. Eu considero muito a usina. Meu filho nasceu aqui e aqui também eu enterrei a minha companheirinha, Leontina, a minha nega. O patrão soube do caso porque contaram pra ele, ajudou muito na doença. Nunca me esqueço que ele me disse que eu tirasse na farmácia o remédio que precisasse. Isso eu não esqueço nunca. Ainda falou pra mim que se a neguinha morresse eu podia faltar ao trabalho que ele não se importava. Nesse ponto também ele foi muito decente. O danado foi que a nega morreu no sábado cedo e eu enterrei ela no domingo. Sendo assim, segunda-feira eu estava no engenho para cumprir a minha tarefa. O patrão quando me viu já veio de lá falando:
– Muito bem, Severino, ora, ora, muito bem. Você é um homem incrível, você é maravilhoso, um empregado exemplar, como nenhum outro existe. Como você não tem outro.
– Não tem outro. Como não tem outro.
Foi assim que o patrão falou. Todo mundo ouviu; só não escutou quem não quis. Um empregado como não tem outro.
– Obrigado, patrão — foi o que eu disse,
Ele aí saiu batendo a poeira da calça e tinindo as botas novas pelo chão do engenho. Nunca fui homem de vale e nem de me faça o favor. Pão pão, queijo queijo. Me mostre, o senhor ou quem quer que seja, um dia que eu tenha feito cara feia pra serviço ordenado ou que tenha remanchado no trabalho. Eu sou assim, doutor, é o meu feitio. Sei do meu valor, como sei a diferença do certo e do errado. Foi por isso, doutor, que me doeu muito quando se deu o caso da partida[3] de aguardente fermentar[4]. O patrão botou a culpa em mim. Eu não gostei, doutor. Ele falou gritando, como se eu fosse merecedor de sofrer uma reprimenda. Todo mundo olhando a descompostura e ele, de cara encarnada, sem parar de falar que eu era um trabalhador sem capacidade, que não prestava atenção no que fazia, que andava com a cabeça sei lá onde, mais isso e mais aquilo outro. Eu respondi? Calado estava, calado fiquei, cabeça baixa, mãos pra trás, deixando ele soltar os cachorros em cima de mim. Cada ofensa do patrão era a mesma coisa que uma facada em cima do coração. Eu uma hora tentei tirar o olho do chão e botar nos olhos dele, só pra ver se ele estava falando de verdade mesmo ou era brincadeira, porque eu não acreditava que fosse de verdade que ele estivesse falando tanta coisa feia de um empregado como eu. Eu quis botar o olho nele, doutor, mas cadê força? Meu olho ficou foi pregado no mosaico. E foi bem cinco minutos de briga. Briga, não, que pra ter briga tem que ter pelo menos dois. Cinco minutos de enxovalhação. Calado estava, calado fiquei. Depois de dizer o que bem quis, me reduzir, me humilhar, acabar comigo na frente de todo mundo, deu meia volta e saiu batendo as botas. Cada um voltou ao seu afazer, botei minha cara debaixo do braço, o mais que eu podia fazer, e tomei uma decisão de vingança. Aquilo, o patrão tinha de me pagar. É justamente por isso, doutor, que, dessa data pra cá, todo santo dia bem cedinho, eu mijo no alambique.
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[1] aparelho de destilação no qual se produz bebidas alcoólicas e, mais comumente, cachaça; [2] cozinhando; [3] quantidade de uma mercadoria; [4] estragar a cana-de-açúcar, não gerando uma cachaça de boa qualidade.
***
O conto se estabelece como um monólogo. Mesmo havendo uma espécie de interlocutor (o “doutor”), quem domina toda a narrativa é Severino, que insere as frases como se fossem cortes que o seu patrão fala.
A estrutura constrói-se totalmente em torno do empregado fiel acima de tudo e sério, nas ações e mesmo na contínua fala afirmativa de como está comprometido com a “causa” do patrão e os méritos que Severino se atribui são todos pautados pelo trabalho e pela lida. Perde mulher e o patrão, bondosamente, deixa que falte para que possa enterrá-la. A situação torna-se cômica, pois “o danado foi que a nega morreu no sábado cedo e eu enterrei ela no domingo.” Se Chico Anysio insere isso é para criar os absurdos da situação e evidenciar, pelo discurso, como a alienação se pode perceber até mesmo nas escolhas de palavras.
Como contraponto ao protagonista, existe o patrão. Que se estabelece em sua posição superior e, “generosamente” estendendo a mão para migalhas ocasionais ao empregado. Até o ponto em que acontece a perda de uma partida de aguardente. A partir disso, no último parágrafo do conto, surge o desfecho cômico e, de certa forma, surpreendente. A imagem de Severino bom empregado se desfaz apenas na última linha, mantendo-se o suspense da ação de vingança que ele fará ao patrão.
A maestria de segurar a piada até o final, algo já consagrado nos personagens de Chico Anysio, nesse conto também se faz presente. Mostrando que, se há a subserviência, também há espaço para a subversão subterrânea que se insinua, quando a injustiça impera.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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