Ao lado do Natal, a passagem do ano, ou o Réveillon, integra esse ritual de mudança e renovação. A própria palavra, que vem do francês réveiller, que significa reanimar ou despertar, apresenta-se como essa necessidade do indivíduo transmutar-se, pois um novo ciclo se inicia.
Embora não trate exatamente da festa da passagem do ano, a crônica de Rubem Braga “Recado ao Senhor 903”, publicada em janeiro de 1953, refere-se ao incômodo de um vizinho pelo outro, em dias (ou noites) de festa e barulho. E, como sempre acontece com o velho Braga, de toda mínima coisa imprevista, uma grandeza aparece e se revela.
Sem mais, vamos a ela:
RECADO AO SENHOR 903
(Rubem Braga)
Vizinho…
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado[1], a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclama contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explicito e, se não fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos[1] ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 horas às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando o número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhes desculpas – e prometo silêncio.
… Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ”Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entra vizinho, e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.
—
[1] aflito, desassossegado; [2] fazemos barulhos.
***
Inicialmente, a crônica brinca com um outro gênero textual, o recado, para enfocar o caráter informal que se quer dar ao texto. E assim, após o vocativo tradicional de um mensagem endereçada, o cronista usa um parágrafo grande, pontuado de uma ironia que não quer ser sarcástica ou ofensiva. É uma resposta a carta anterior, que Rubem Braga, ao invés de apenas dialogar com o vizinho, faz disso tema para analisar a sempre complicada relação interpessoal. Ao invés de nomes, há números, inclusive com ele se apresentando como o “homem do 1003”.Por isso, o jogo de impessoalidade dos números, em união com o jogo meramente geográfico dos blocos que são os demais apartamentos, demonstra que o cronista vem como forma de desfazer tal atitude – razão pela qual se compara ao Oceano Atlântico, que faz barulhos e não obedece às leis dos homens.
Claro que o cronista sabe da política da boa vizinhança, de modo que pede desculpas, promete rever suas ações, não sem antes revelar a quantidade de números em que cada ser humano se converte (ou se deixa converter) para garantir a sua ordem.
Mas a crônica se desvia do tom e insere um lirismo da imaginação, com Rubem Braga compartilhando seu sonho de comunhão entre os vizinhos. Assim, após a crítica velada (mas não tanto) aos números frios e sem vida, sucede o desejo de união entre as pessoas, celebrando a vida presente e o tempo presente – como Drummond nos poemas “Mãos dadas” ou “Passagem do ano”.
É como se o que realmente valesse para o cronista, e esse texto servisse como pretexto para tal, fosse esse cantar contínuo das pequenas coisas, numa atitude menos intransigente e seca, e mais de agradecimento por quem se é e com quem se convive.
Aproveitando que essa crônica está para completar 66 anos, deseja-se que todos tenhamos um bom e sempre renovado “despertar”, e que se possa desenvolver e aprimorar a forma particular de cada um de ver (e ler) o mundo, as pessoas e os textos.
Tudo de bom e coisarada.
Feliz Ano Novo!
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
2 Comments
Achei legal
I foram realmente procurando por isso todo esse tempo.
Grato eu tê-lo encontrado aqui. Obrigado muito!