O Dia da Consciência Negra tem como intuito evocar a raiz ancestral que nutre todo o povo brasileiro, buscar a fonte originária, que nasce do lado de lá do rio chamado Atlântico, e enaltecer os valores de matriz africana. Graças à miscigenação e às trocas culturais, não há brasileiro que não carregue consigo ecos das vozes e use e sinta a cultura dos países da África.
Angola, como um dos países africanos de expressão portuguesa, traz em sua literatura esse jogo de usar a língua do colonizador para afirmar a sua identidade africana e angolana, sempre reiterando o seu lugar, a sua história, a sua raça. É o que acontece nas obras do poeta Agostinho Neto, que lutou pela libertação de Angola da colonização, tornando-se, inclusive, o primeiro presidente do país. Seus poemas, durante a Guerra Colonial, serviam de inspiração e força para prosseguir na luta. Hoje, seus poemas tornam-se estímulos de resistência e impulsos de relembrar e sentir a história, o que se percebe, por exemplo, no poema “As terras sentidas”.
Sem mais, vamos a ele:
AS TERRAS SENTIDAS
(Agostinho Neto)
As terras sentidas de África
nos ais chorosos do antigo e do novo escravo
no suor aviltante[1] do batuque impuro
de outros mares
sentidas
As terras sentidas de África
na sensação infame do perfume estonteante da flor
esmagada na floresta do ferro e do fogo
as terras sentidas
As terras sentidas de África
no sonho logo desfeito em tinidos de chaves carcereiras
e no riso sufocado e na voz vitoriosa dos lamentos
e no brilho inconsciente das sensações escondidas
das terras sentidas de África
Vivas
em si e connosco vivas
Elas fervilham-nos em sonhos
ornados de danças de embondeiros[2] sobre equilíbrios
de antílope
na aliança perpétua de tudo quanto vive
Elas gritam o som da vida
gritam-no
mesmo nos cadáveres devolvidos pelo Atlântico
em oferta pútrida de incoerência e morte
e na limpidez de rios
Elas vivem
as terras sentidas de África
no som harmonioso das consciências
incluída no sangue honesto dos homens
no forte desejo dos homens
na sinceridade dos homens
na razão pura e simples da existência das estrelas
Elas vivem
as terras sentidas de África
porque nós vivemos
e somos as partículas imperecíveis[3]
das terras sentidas de África.
—
[1] degradante, humilhante; [2] árvore como baobá; [3] que não perecem, que não morrem
***
Umas das fontes de força do poema está na série de elementos que o poeta vai enumerando, como se lançasse imagens que se tornam símbolos a serem evocados. O principal deles é o do título, que se prolonga e se repete pelo poema todo: as terras que se sentem.
As três primeiras estrofes vão, cada uma por sua vez, expor figuras desse sentir em que a própria terra africana parece se prolongar. Ouvindo-se os “ais chorosos”, tanto dos escravos traficados durante toda a colonização (que vai desde o século XVI até meados do século XIX, ou seja, praticamente trezentos anos), quanto das novas modalidades de escravidão a que se submetem ou são submetidos. E o poeta acrescenta, além da audição, o tato do “suor aviltante” e o olfato do “perfume estonteante”. Apontando-se, inclusive, para a flor, que é “esmagada” pelo ferro e pelo fogo. Soma-se a isso a esfera do sonho, que se quebra pela realidade da prisão, da opressão e do sufocamento desse sentir africano, em que mesmo o riso, a vitória e o brilho são coisas positivas que logo se perdem.
Mas eis que, como dividindo o poema, Agostinho Neto mostra que, mesmo com todas as adversidades impostas, as terras sentidas de África permanecem vivas, tanto nelas mesmas, quanto naqueles que as sentem.
Substituindo pelo pronome “elas”, substitui-se também as noções de localização das primeiras estrofes pelos verbos de ação. De modo que elas “fervilham” (estrofe 5), “gritam” (estrofe 6) e “vivem” (estrofe 7) em novos múltiplos lugares. Os sonhos invocatórios de África conseguem equilibrar as árvores frondosas na leveza de antílopes, formando a “aliança perpétua de tudo quanto vive”.
A vida é o que se sobressai, mesmo no símbolo máximo da dor e da morte sentida pelos africanos vendidos como escravos e morrendo na travessia do Atlântico, pois mesmo nesse ato horrendo, com a água que a tudo carrega, também cabe a limpidez dos rios, pois a África, como exemplo da conexão íntima com a natureza, transforma a vida e os próprios seres.
E se há o sentir africano nos “ais chorosos”, também há no “som harmonioso das consciências”. Tal sugestão, para além de ilustrar o dia 20 de novembro, simboliza essa necessidade de incorporar a cada sujeito a consciência de sentir as terras africanas pulsando dentro de si mesmo. No “sangue honesto” e não hipócrita de saber-se miscigenado, no “forte desejo” de ser humano, na “sinceridade” de mostrar-se quem se é, sem máscaras nem fingimentos.
Por isso as terras africanas se sentem, pois cada um é “partícula” de África e deve sentir-se parte integrante dessa cultura, dessa tradição, desse povo. Não somente nesse dia, mas em todos os dias.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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