Guimarães Rosa não foi apenas o autor que expandiu o sertão para caber nele o homem universal. Se em seus contos e romances a paisagem sertaneja e a linguagem em mutação servem de palco e fala para os dramas humanos, ele também soube aproveitar ideias súbitas que lhe surgiam. Foi assim, por exemplo, com “A terceira margem do rio”, um de seus mais famosos contos, cuja ideia veio toda inteira enquanto subia num ônibus.
Algo que também parece ter acontecido com “Fita verde no cabelo”, publicada no livro Ave, palavra, sendo uma história de evocação do conto Chapeuzinho Vermelho, mas com uma inversão e subversão, como se, ao mesmo tempo, fosse a mesma, mas fosse outra. Mais humana, mais consciente, mais triste. E o estilo rosiano, por certo, cria lances de linguagem que fornecem ao leitor novos jogos e surpresas. Há de se ler como se fosse em voz alta, como se contasse a outro essa nova velha história.
Sem mais, vamos a ele:
FITA VERDE NO CABELO – Nova velha história
(João Guimarães Rosa)
Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo. Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.
Daí que indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então, ela mesma, era quem se dizia: Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou. A aldeia e a casa esperando-a, acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente vê que não são. E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso[1]. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra, também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebéinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejadamente[2]. Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela toque, toque, toque, bateu:
– Quem é?
– Sou eu… – e Fita-Verde descansou a voz. – Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com fita verde do cabelo, que a mamãe me mandou.
Vai, a avó, difícil disse:
– Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe.
Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou. A avó estava na cama, rebuçada[3] e só. Devia, para falar agagado[4] e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo:
– Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.
Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
– Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!
– É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta – a avó murmurou.
– Vovozinha, mas que lábios, ai, tão arroxeados!
– É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta… – a avó suspirou.
– Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado e pálido?
– É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha… – a avó ainda gemeu.
Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.
Gritou:
– Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.
—
[1] menor (variação de encurtado); [2] em demasia, muito; [3] coberta; [4] com gagueira;
***
Três são os movimentos que o conto realiza: a descrição do cenário e da personagem; a viagem empreendida pela personagem; o desfecho com a revisitação da série de perguntas feitas à vovó e a súbita nova forma de ver.
A aldeia descrita, com seus velhos “velhando”, mostra-se como esse lugar deslocado do tempo e do espaço, em que “tudo era uma vez”, como entrando no ambiente maravilhoso dos contos de fadas. A meninazinha, por sua vez, como sendo a única sem juízo, é a que inventa a fita verde, tornando-se símbolo dessa capa (ou chapeuzinho) que a protege do mundo, como se a envolvesse num limite de inocência.
Ao empreender a viagem à casa da vovó (como na história), ela não vai se deparar nem com lenhadores nem com lobo, os primeiros, porque estão empenhados em lenhar, o segundo, por ter sido exterminado em tempos passados. Assim surgem as figuras da inocência desse mundo à parte: há os moinhos, há as horas, há os caminhos repletos de sonhos e imagens inventadas. A menina se envolve nessa atmosfera, vendo a natureza numa perspectiva lúdica, das avelãs não voando, das borboletas sendo quase flores. E então há a ruptura, com a chegada à realidade da velha avó doente estendida na cama…
A avó avisa “vem para perto de mim, enquanto é tempo”. Essa chave faz com que a menina perceba o distanciamento do mundo de sonho em que estava e entre na realidade: perdeu a fita inventada, suava e estava com fome. Nessa hora, surge a série de perguntas clássicas da menina para sua avó que se pretendem ir crescendo em tensão e suspense para o ataque final do lobo disfarçado. Nessa história, Guimarães Rosa traz para o terreno concreto da avó idosa, para quem o tempo se está findando e já está triste com a despedida. São os braços, são os lábios, são os olhos, que vão perdendo a força e a vida.
É aí que acontece a grande transformação do conto, pois Fita-Verde assusta-se “como se fosse ter juízo pela primeira vez”. A menina, diante da avó que morre, não pode mais ignorar a existência das tristezas do mundo, nem se isolar na própria bolha de alegrias inocentes. O mundo se impõe, e mesmo que ela ainda faça uma última tentativa, dizendo ter medo do “Lobo”, isto é, do desconhecido e daquilo que aterroriza, o lobo não mais existe (pois os lenhadores o mataram). Mas há outras coisas, como o tempo, que, simbolicamente, também devora a todos. E isso se revela à menina, que não pode mais trancar-se em seu ambiente infantil.
Por certo que Guimarães Rosa não quer, com esse conto, destruir infâncias. Antes, como função central da literatura, ele pretende acrescentar outros sentidos para ampliar a visão de mundo dos seus leitores. Não se pode viver restrito à inocência infantil, pois o mundo tem lados cruéis, e se deve enfrentá-los. Mas também se pode celebrar a infância que persiste em todos, algo que acontece, por exemplo, no conto “A menina de lá” ou “As margens da alegria”. O que se precisa é equilibrar.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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