Em tempos de intolerância, a literatura se mostra um bom exercício de entrar em outra visão. O autor, ao propor um personagem, deve conferir-lhe existência e uma forma de vida própria, isto é, mesmo que o escritor não concorde com o que o personagem pensaria ou diria, é buscando a fidelidade a esse direcionamento que o texto se apresenta mais nítido e válido. E o leitor, diante de cenas e falas totalmente opostas ao seu modo de pensar, ao invés de simplesmente ignorar, tendo contato com isso, pode visualizar como é o “outro lado”, pois a razão e a verdade se situam numa zona neutra, que às vezes se insinuam, mas jamais são dominadas, por nenhum lado.
Rachel de Queiroz, uma das maiores romancistas brasileiras, autora de O Quinze e Memorial de Maria Moura, traz isso consigo. Seus personagens revelam-se como exemplos de humanidade e eles (ou o leitor através deles) descobrem diversos modos de opressão social. É o caso de “O vendedor de ovos”, crônica-conto de 1963, publicada no livro A casa do morro branco, com um diálogo de um preso atado a preconceitos com um delegado:
Sem mais, vamos a ela:
O VENDEDOR DE OVOS
(Rachel de Queiroz)
O delegado: — …Bem, mas o senhor há de confessar que isso não é coisa que se faça a homem…
O preso: — E agora pergunto eu ao senhor: e aquilo é homem? Será que pega em enxada, veste roupa de couro, monta a cavalo? Vai ver, nunca soube tirar o leite de uma vaca, nunca soube o que é limpar uma carreira de mato. Agora, viver desinquietando as famílias, comprando iludição pras mulheres toda vez que vai na cidade — isso ele sabe. É trazer vidro de extrato, corte de estampado, lata de pó, até rede de fábrica! E ele não é nem galego, pra se fazer de mascate…
Delegado: — Mas o homem não é negociante de ovos? Compra os ovos e paga com mercadoria.
Preso: — Ora, ovos, seu Delegado! Sei que ovos está muito caro — mas, do jeito que ele conta, nunca vi galinha nenhuma produzir assim. Lá em casa tem onze galinhas, mas botar o que as mulheres dizem, só cada uma botando três ovos por dia. E nenhuma choca nem levanta a postura. Faz meses que eu não vejo um ovo frito ou uma mal-assada de toicinho no meu prato. Tudo é pro seu Anjinho! Até o nome dele, seu Delegado. Não quer se chamar nem José, nem Chico, nem Manuel, como qualquer ho-mem… Como é o nome de Vossa Senhoria?
Delegado: — Clodomir.
Preso: — Bem… Não é nome de santo que eu conheça… mas pelo jeito se vê que é nome de homem. Agora aquilo — diz que se batizou Angelo, mas se as moças gostam de chamar de Anjinho, que é que se vai fazer?
E fosse só o nome. Mas a vida dele é só, quer de baixo, quer de cima, pelos trens, comprando ovo aqui, vendendo ovo na cidade. Agora deu pra andar com um rádio, um radinho pequenininho, uma porqueira, canta fino como um danado, mas as mulheres acham a coisa mais linda. Chega pelas casas nas horas em que tudo que é homem saiu pro trabalho e já de longe o mulherio escuta o rádio estralando e botando a boca no mundo.
No meu tempo, aquelas cantigas de beijo, com licença da palavra, só se cantava era em pensão de zona — mas agora o rádio ensina em qualquer casa de família… A gente, homens, conhece que seu Anjinho passou por ali porque, ao chegar em casa, só o que encontra é mulher andando pra dentro e pra fora e se esgoelando em samba carioca. E a meninada miúda pelos terreiros chutando pedra e gritando “Gol! Gol de Amarildo[1]!”, porque naquele rádio ele também bota futebol.
Aliás, esse negócio de mulher é tão medonho por rádio que uma moça nossa conhecida, que veio do Rio de Janeiro passar uns tempos com a mãe, trouxe um consigo e, até quando andava pelas casas, de visita, pagava um moleque pra ir na frente, carregando a caixotinha do rádio, cantando como um desesperado…
…Sim, seu Delegado, não estou fugindo do assunto, falar em rádio é o mesmo que estar falando no seu Anjinho. O senhor acha que ele está muito maltratado? Bem, também nunca foi bonito, um pouco mais amassado aqui ou ali, não faz alteração… A graça dele era aquele dente de ouro, mas isso ninguém arrancou. Pode ter amolegado um pouco, mas está lá, o beiço inchado é que não deixa ver direito. O cabelo? Ora, cabelo cresce. Diz que cabelo raspado, quando cresce, vem até mais cacheado…
…Seu Delegado, o senhor sabe qual era a outra mercadoria dele? Livrete de modinha! Achava pouco o rádio, ainda trazia o livrete pra ensinar as cantigas. Era botar o rádio tocando e as meninas em redor, de livrete aberto, acompanhando as letras.
Deus que me perdoe, parecia até moça de coro aprendendo bendito! E pensar que mandei ensinar minhas filhas a ler pra semelhante resultado!
Delegado: — E como é que você explica o braço quebrado?
Preso: — Quebrado? Aquilo é muito é dengoso! Seu Delegado, ninguém quebrou braço nenhum, não. Pode ter desmentido a junta, foi o mais que aconteceu: desmentiu. Ora, quebrar! Isso é parte daquele mimoso! Ninguém é perverso pra andar quebrando osso alheio. Sim, agora quebrar — quebrou foi a cesta dos ovos…
Delegado: — Sessenta ovos.
Preso: — Está vendo o que eu disse? Sessenta ovos! O senhor já pensou que arraso nas capoeiras! Ora veja! Sessenta ovos! De onde terá saído?
Delegado: — E, fora os ovos, ele ainda pede indenização pelas fazendas[2] extraviadas.
Preso: — Extraviadas? Aqueles panos que ele carregava num saco? Seu doutor Clodomir, ninguém ficou com fazenda dele, não! Ora, pra que a gente queria as chitas dele? O que os meninos fizeram foi arrumar uma saia nele… com os panos mais florados… Vossa senhoria me desculpe, mas todo mundo achava graça, e agora só de me lembrar, ainda me dá vontade de rir… Os meninos tocando sanfona e obrigando o seu Anjinho a dançar, arrastando a saia… Era ver uma cigana. Ele diz que era à força — mas o diabo é tão sem sentimento na cara que assim mesmo requebrava…
—
[1] jogador brasileiro do Botafogo entre 1958 e 1963, figura importante no bicampeonato mundial do Brasil, em 1962, ao lado de Garrincha; [2] peça de tecido vendida para confeccionar roupas.
***
Não existe palavra neutra, e cada termo usado é usado com uma intenção (consciente ou não). No caso desse conto, é narrada indiretamente a história de um homem que “desinquietava” as mulheres e crianças, por mostrar-se diferente do que o preso-narrador considerava correto.
As falas surgem como tentativas de menosprezar a vítima: “aquilo é homem?”, “seu Anjinho! Até o nome dele”, “também nunca foi bonito”, “O cabelo? Ora, cabelo cresce”, “Isso é parte daquele mimoso”, “Era ver uma cigana”. E as ações evocadas pelo preso (embora representando um grupo maior) também: bater em Anjinho, quase lhe arrancando o dente de ouro e lhe quebrando o braço; raspar o seu cabelo; quebrar os ovos e fazer dos tecidos que vendia uma saia, para obrigá-lo a dançar.
Elemento interessante desse conto, em que se sobressai muito mais a intensidade do que se conta do que a ação descrita, é a ênfase dada às duas esferas: de um lado, as ações de Anjinho, para o preso, são todas apresentadas com cores trágicas e dramáticas – fazia meses que não comia ovos, as músicas no rádio, tocadas em horas em que as mulheres estavam sozinhas, os livretos com as letras, mostrando o desperdício de ter ensinado as meninas a ler; de outro, os ataques do grupo a Anjinho são relativizadas e tratadas em tom suave – bateram nele, mas ele já era feio; o dente de ouro não caiu, talvez deu uma “amolegada”; cortaram o cabelo, mas deve crescer mais cacheado; o braço não quebrou, no máximo, desmentiu a junta.
Com tudo isso, Rachel de Queiroz consegue sintetizar como a declaração do preso de que “ninguém é perverso” tende a se contradizer com tudo que a sua descrição revela. E cada palavra carrega consigo um sentido segundo, preconceituoso e disfarçado, mas que se vai revelando aos poucos. O que se mostra como um recorte ficcional de um interrogatório que, mesmo distante mais de cinquenta anos, ainda traz um sabor amargo de atualidade…
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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