Para se ler um poema, deve-se, sobretudo, ter em mente as escolhas de símbolos, de imagens, de referências, a construção de ritmo, de rima, de estrofes, enfim, tudo que o poeta criou para manifestar a visão que tem sobre algum aspecto do mundo, de si mesmo, da sociedade, da História, da vida, da morte, da palavra, enfim, de tudo e de qualquer coisa.
Como muitos poetas escrevem sobre muitas coisas, e como os leitores vão agregando à própria leitura global tudo que cai em suas mãos, é natural que se realize a comparação entre textos. Não necessariamente de qualidade, mas de aproximação temática, estilística, temporal ou seja, todo texto pode se conectar com tudo que foi produzido, evocando discursos múltiplos que se estendem ao infinito.
Para exemplificar essa Literatura comparada, dois poemas de dois autores muito conhecidos: Cecília Meireles e Manuel Bandeira (sugestão de @quemvailerpramim). Neles, um com um ritmo mais marcado e de rimas mais fluidas outro mais evidentemente modernista, até com certo tom de poema em prosa. Em um, há o jogo de contradições que existem em toda pessoa, no outro, canta-se o jogo de aproximações que pode unir todas as pessoas que existem.
Sem mais, vamos a eles:
LUA ADVERSA
(Cecília Meireles)
Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…
ARTE DE AMAR
(Manuel Bandeira)
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
***
A primeira coisa a apontar é que alguns textos dialogam entre si de maneira mais evidente do que outros, da mesma forma que não se pode “forçar” interpretações e aproximações, correndo-se o risco de gerar distorções… Deve-se ler e sentir e pensar e refletir e desassossegar-se com o que se leu!
O poema ceciliano, todo construído em heptassílabos (7 sílabas poéticas), evoca a esfera da transitoriedade, da passagem entre estados. E elege-se a lua como símbolo, uma vez que ela, mesmo sendo uma, é múltipla em suas faces. Assim, a voz poética se apresenta como a reveladora das próprias adversidades, contradições e mudanças. Se há fases de interação, há fases de isolamento, e isso se constrói poeticamente por meio da oscilação dos contrários, em antíteses (escondida… vir para a rua / ser tua… ser sozinha).
(Vale ressaltar que, mesmo notando nos versos 6, 7 e 17 uma marcação do sujeito como feminino, propõe-se que tais fases se passam com todo o gênero humano. Por certo que as mulheres têm esse jogo caleidoscópico mais evidente, mas tal movimento se deve fazer, no sentido de não restringir o olhar para que, se um homem escreve, escreve pensando na humanidade toda, e se uma mulher escreve, será para se referir ao gênero feminino…).
São três momentos que se apresentam. O primeiro é o da afirmação das contradições. O segundo, por sua vez, é a explicação do inexplicável. Pois essas fases em mutação não se podem compreender racionalmente, por isso se projeta um “astrólogo arbitrário” que definiu tais fases, também ele abstrato e fluido. Interessante apontar que o satélite-símbolo escolhido é a melancolia, que roda em torno de si mesma e que, “interminavelmente” vai orbitando (que o diga Álvaro de Campos, em praticamente qualquer poema…).
O terceiro momento, afinal, é o da negação em suspensão. Ao estabelecer-se como um não encontro, a voz poética cria o elemento do “dia”, isto é, o ponto preciso em que ocorreria o encontro. Como se define como um ser de fases, como a lua, ocorrem os desencontros: “no dia de alguém ser meu / não é dia de eu ser sua…”. Ou seja, o destino se torna algo não afirmativo, pois, mesmo que chegue “esse dia”, em que seria a fase do encontro para a voz poética, o “outro desapareceu”.
Manuel Bandeira, por sua vez, em um poema altamente pontual e aforístico (como se fossem “frases de efeito”, embora não sejam só isso), revela sua visão sobre a “Arte de amar”. O título é igual à obra do escritor romano Ovídio, que ensinava sobre as artes da conquista e dos galanteios (no século I a.C). No caso de Bandeira, brincando com a forma poética tanto do ponto de vista do verso (pois não há uma métrica identificável), quanto das estrofes (são quatro estrofes, sendo que as três últimas são feitas de só um verso), ele pontua uma dualidade fundamental na questão amorosa: a alma e o corpo.
Como um novo Ovídio, ele aconselha o seu leitor sobre a forma de “sentir a felicidade de amar” e, contrariando a ideia das “almas gêmeas”, do ideal romântico do amor espiritual, Bandeira descarta a alma de todo o jogo amoroso. Com cada verso formulado como uma premissa que afirma ou nega seu argumento, ele revela que o único amor possível, na alma, é o da transcendência, fora do corpo e da matéria, na esfera de Deus ou do Além.
Para o poeta, o amor possível, realizável, acontece na esfera concreta do mundo, ou seja, do corpo. Se “as almas são incomunicáveis”, por estarem ligadas a um outro plano superior, os corpos se podem “entender” e conectar, uma vez que são matéria.
Assim, nesse duplo conselho, de esquecer a alma e deixar o corpo ligar-se a outro, revela-se a “arte de amar” de Manuel Bandeira. Tão simples e concreta quanto a que se demonstra em “Porquinho-da-Índia”, “Segunda canção do beco” ou “Tragédia brasileira (esse último, com amores extremos). E tão intimamente sublime, que nesse amor concreto se celebra o real, ao passo que o amor abstrato, incomunicável, apenas em pensamento e ideias, “estraga o amor”, talvez por ser apenas projeto imaterial de amor.
Olhando-se para os dois poemas, e os dois poetas, nota-se que ambos trazem as questões da interação pessoal e da conexão entre os seres. Em “Lua adversa”, tem-se o foco sobre o indivíduo, que sabe ser múltiplo e alternante (algo visto também no poema infantil “Ou isto ou aquilo”) e que, mesmo sem se compreender, deve viver e relacionar-se com as pessoas, com o risco de “perder-se”. Em “Arte de amar”, como série de ensinamentos, o foco recai sobre o amor (o relacionamento interpessoal) que deve ocorrer não num campo imaginativo, da alma, mas sim na descoberta de si e do outro como um ser material, um corpo.
Ora em rima e métrica, ora em verso livre e branco, Cecília e Bandeira se deparam com as angústias das contradições íntimas, que parecem impedir a realização do amor, mas que, ao fim e ao cabo, só se concretiza quando as faces múltiplas das pessoas se aproximam e permitem que se enxerguem, como se dissessem “Este sou eu e esse é você”.
É preciso ler poemas, muitos poemas, e perceber que todos eles se aproximam, pois todos são um modo de olhar para as coisas e compreender as coisas, mesmo quando falam de outras coisas.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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