A vida é feita de lutas, de bandeiras e de questionamentos. Da mesma forma, tudo aquilo que é avesso à luta justa, quebra colunas e esmaga perguntas. Não há o que dizer sobre a execução de Marielle Franco, a não ser que foi uma forma brutal de querer calar uma voz indagadora, que buscava representar milhares de pessoas postas à margem, à curva, ao canto.
Toda literatura silencia, quando o homem, arauto da morte, ceifa a vida com tirania. Mas uma voz que emudece é energia para liberar outras vozes ao brado. E todo pensamento deve virar palavra, e toda palavra deve virar ação.
E toda leitura deve tornar-se instrumento de estranhamento, face a um mundo cada vez mais carente de batalhas justas, críticas e conscientes. Como a desse poema, escrito em 1998, na obra O tempo submerso, de Maria Alexandre Dáskalos, poeta angolana que, ao apresentar esses símbolos, evocou a esse professor o triste fim de uma esperança.
Vamos a ele, para mais:
(Maria Alexandre Dáskalos)
Onde cairá o orvalho se as pedras perderam dono
e história
e só as coisas torpes e destruídas
cobriram os campos e tornaram cinza o verde?
Oiço exércitos do norte do sul e do leste
fantasmas lançado o manto das trevas
os rostos exilando-se de si mesmos.
Oiço os exércitos e todo e qualquer som abafarem.
– Não ouves a chuva lá fora, a voz de uma mulher,
o choro de uma criança?
Oiço os exércitos, oiço
os exércitos.
Quero reconstruir tudo – alguém disse
e ouvimos cair as árvores.
E vimos a terra coberta de acácias
e as acácias eram sangue.
Estamos à beira de um caminho
– que caminho é este?
Inventam de novo o voo dos
pássaros.
Aqui já se ouviu o botão da rosa a desabrochar.
***
Dessa vez não há interpretação particular… Ao invés disso, sugere-se ler esse poema vezes sem conta, em voz alta, para alguém ao seu lado, para percebermos os fantasmas e os exércitos que exilam o homem de si mesmo. E talvez possamos perceber que a reconstrução do que quer que seja não pode partir de árvores caídas, e coisas torpes e sangue.
Marielle Franco era extrema defensora dos direitos humanos. Tão frágeis e tão necessários. Mas também temos, cada um, de buscar o comprometimento próprio com os deveres humanos e para com os outros humanos. Só assim lutaremos pela humanidade, em um tímido caminho que se insinua…
Estaremos prontos?
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