Todo poeta, em algum momento e de alguma forma, cantou o amor, mas poucos foram como Florbela Espanca, que se uniu de tal forma a esse sentimento que produziu vários poemas (em boa parte sonetos) que parecem captar a essência desse “fogo que arde sem se ver”, como diz Camões.
Nesse Dia de São Valentim, Florbela se pode apresentar como uma embaixatriz do amor, não talhado em corte piegas, mas revelado na complexidade infinita desse sentimento, que se explica, justamente, em sua não explicação.
Sem mais, vamos a ele:
AMAR!
(Florbela Espanca)
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui… além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi p’ra cantar!
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…
***
Antes de Florbela Espanca, Sóror Mariana Alcoforado, em suas Cartas portuguesas, já antevia a questão central desse soneto: o ato de amar não a outra pessoa em si, mas sim o próprio amor sentido, ou seja, ama-se o próprio fato de estar amando, não propriamente o objeto amado. Por essa razão, o título do poema ganha expressividade com o ponto de exclamação, como uma afirmação explosiva desse amor a ser cantado.
A figura do “Eu”, na poesia de Florbela, tanto pode se contrapor a um “Tu” – como é o caso de “Os versos que te fiz” ou “O nosso livro” –, quanto tornar-se elemento catalisador do Amor – como em “Ser poeta” (que merece ser lido logo depois desse texto) ou esse poema em questão.
Logo no primeiro verso já se encontra essa concentração no “Eu” e nessa necessidade de amar. Como se nota, não é um amor direcionado, mas sim voltado para si mesmo, “amar só por amar”. Algo na ideia de diluir-se para ampliar-se, pois dirige-se a Este, Aquele e o Outro –esses termos em maiúscula tornam-se uma espécie de entidade, como se fossem uma fusão entre o abstrato e o concreto. Mas não se dirige a uma pessoa específica e sim, ao amor como elemento de travessia e passagem.
Tal ideia será ampliada na segunda estrofe. A uma necessidade interna do “Eu”, segue uma busca por entender a conexão que se estabelece com o ser a que se ama. Assim como o conhecido poema de Camões citado no começo, Florbela constrói em oposições os modos de amar (ou desamar): recordar e esquecer; prender e desprender; mal e bem. Porém não elimina nenhum dos termos, mantendo-os como questionamentos aos quais se apresenta como “indiferente”.
Assim, sabendo da profundidade e variedade dos amores (lembrando-se de que “tão contrário a si é o mesmo Amor”), a voz poética relativiza, desvia-se de uma definição precisa, pois o ato de amar é fluido e oscila em sua inconstância. Afinal, há amor que recorda, há amor que esquece, há amor que prende ou desprende, e mesmo bons e maus amores. E há amores que juntam tudo isso, alternando-se.
Por essa razão, nos versos 7 e 8, quebra-se o ideal romântico de “amor da vida inteira”, lançando-o como uma mentira. Com isso, Florbela não quer dizer que não se pode amar alguém, mas sim que esse sentimento é altamente mutável, uma vez que as próprias pessoas se vão transformando e a própria vida se modifica. Então, quem diz que ama alguém eternamente deixou de amar a pessoa e passou a amar a ideia da pessoa, não a sua realidade. E é nesse sentido que a proposta da primeira estrofe se revela muito mais livre e amorosa, pois é focada no “Eu”, do que do amor romântico, focado em um “Tu” projetado e irreal.
Na terceira estrofe, surge o símbolo da Primavera, como a renovação da vida após o inverno, associando-se, também, com as figuras da flor e da voz que canta. E se haverá a morte, uma vez que é um ciclo, “é preciso cantar” a vida enquanto está florida. Dessa forma, uma nova dualidade se revela: do amor e da morte.
Como forma de tornar “a minha noite uma alvorada”, a voz poética mostra essa necessidade de morrer para voltar à vida. Nesse sentido, ao invés do amor imortal inexistente, o que se sobressai é um amor que se perde e se encontra, tal como uma fênix, que renasce das próprias cinzas. Isto é, na poesia de Florbela Espanca, a morte simbólica do amor ocorre para que possa regressar muito mais forte, muito mais amplo, muito mais pleno.
Aproveitando a coincidência de que esse Dia de São Valentim caiu numa Quarta-feira de Cinzas, que os processos de morte e renovação, de inverno e primavera, de perda e encontro, de esquecimento e redescoberta deem o tom para os amores, tão múltiplos quanto as pessoas.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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Lindo poema e análise! Bela escolha para essa data.