A crônica é um gênero multifacetado, que transita pelo cotidiano mais trivial, mas extrai dali uma grandeza. Mas não é algo fácil de se fazer (que o digam os cronistas!), pois não basta o assunto – ou a falta dele – para escrever a crônica. Ou o cronista pesca a ideia e vai construir um texto que possa transmitir o que ele quer, ou descobre um jogo textual que merece ser escrito e vai caçar uma lembrança, uma história para ilustrar.
É o que acontece nas crônicas do humorista português Ricardo Araújo Pereira, que deixa entrever na despretensão de seus textos um lance verbal altamente pensado. Ou, pelo menos, medianamente pensado. Enfim, deve ter sido pensado…
Sem mais, vamos a ele:
AMOR E BATATAS
(Ricardo Araújo Pereira)
Os poetas têm falado muito sobre amor, pouco sobre batatas, e nada sobre a relação entre o amor e as batatas. É muito triste que tenha de ser eu a preencher as lacunas que a grande literatura vai deixando.
Talvez o problema seja meu: na minha vida, o amor manifestou-se menos sob a forma de grandes gestos e mais sob a forma de batatas. Os poetas cantam beijos loucos, gritos roucos, lágrimas, ânsias, despedidas, traições, ausências – mas às batatas não dedicam nem um epigrama.
É o seguinte: quando eu era pequeno, a minha avó fazia o almoço muito antes da hora, para que nada faltasse. Ela não tinha uma inclinação natural para beijar ou abraçar, mas fazia outras coisas.
Quando o ônibus do colégio me vinha buscar ela ficava a olhar, à janela, até eu dar a curva. E à tarde, quando o ônibus me trazia, ela já estava na mesma janela, à espera.
Eu tinha seis ou sete anos e ficava com a sensação de que ela ficara ali o dia todo, com a vida suspensa. Hoje sou adulto e a razão diz-me que não era assim – mas o coração continua a não ter a certeza.
No fim de semana, muito antes da hora do almoço, ela fritava batatas, punha num prato, e depois cobria com a tampa de uma panela. O vapor condensava-se no interior da tampa e depois a umidade chovia sobre as batatas. Por isso, as batatas ficavam moles.
Na casa da minha avó, nunca comi batatas que não fossem moles. Quando hoje me põem no prato batatas estaladiças eu penso: essa pessoa sabe fritar batatas, mas ela não me ama. Não fez as batatas com aquela antecedência. Arriscou que as batatas não estivessem prontas quando eu quisesse almoçar.
Batatas estaladiças, fica o leitor avisado, são cruéis. Têm arestas aguçadas que ferem o céu da boca, e estão muito conscientes do seu próprio mérito, reluzentes de óleo. As batatas moles, tubérculos humildes e meigos, suportam com paciência a aflição amorosa que as tornou moles, e a sua indolência morna tranquiliza quem estiver nervoso.
Penso muitas vezes naquele momento, no fim do “Cidadão Kane”, em que ele, mesmo antes de morrer, diz “Rosebud”, o nome de um trenó que tinha quando era criança. Eu, muito provavelmente, direi: “batatas moles”.
***
Essa crônica foi publicada no jornal Folha de S. Paulo no dia 23 de junho de 2017 e recorre a um dos principais expoentes dos cronistas: a rememoração.
Aqui, esse recurso da memória está filtrado pelo olhar do cronista adulto, fazendo com que uma ponte passado-presente se estabeleça com cores da saudade.
Quatro são os passos que Ricardo Araújo Pereira realiza: 1) Uma digressão inicial, isto é, a conversa com o leitor, chamando-o a participar do texto; 2) Regresso à infância e apresentação da figura da avó; 3) Descrição e leitura do ato de fritar batatas com antecipação; 4) Conclusão, com ares de grande dramaticidade.
O título é um elemento que sempre deve ser observado, na leitura de qualquer texto, pois é o primeiro contato com o leitor. E esse “cartão de visitas” tanto pode ser autoexplicativo, quanto conter certo grau de estranhamento e curiosidade, como no caso da crônica, com a conexão direta de duas entidades totalmente distintas.
O tom irônico se mantém no início do texto, em que o cronista se autoelege como o cantor das ligações entre amor e batatas. Na verdade, é o amor dele que será cantado, tendo como símbolo as batatas, e mais do que isso, a manifestação do amor da avó na ação simples de fritar batatas.
Mas, uma vez que toda a cena é filtrada pelo olhar do autor, que ainda conserva uma visão carinhosa daquela avó, é a interpretação de todo o ato que garante a beleza, o humor e a afetividade da crônica.
Com isso, a crônica cumpre seu papel de, na sua aparente conversa fiada, apontar que não há objeto ou ação tão banal que não possua dentro de si algo que transcenda e conecte todas as pessoas. Assim, evocando o filme de Orson Welles (que merece ser assistido ou, caso já o tenham visto, merece ser assistido novamente), a derradeira lembrança, no último instante de vida, será daquilo que mais marcou a sua infância e a sua vida. Se Ricardo Araújo Pereira coloca tamanha carga simbólica nas “batatas moles”, é por que elas se tornam símbolo de algo que toca as raias do transcendental. Nunca antes uma batata foi tão longe.
É importante mencionar o valor dos novos escritores e dos variados gêneros, pois nem só dos Lusíadas e dos romances machadianos vivem os leitores. Os méritos do cânone devem ser respeitados e buscados sempre, afinal as coisas que lá estão continuam a fazer sentido e revelar formas das pessoas compreenderem a si e ao mundo. Mas, após encarar os dez cantos de Camões, é preciso um tempo para digerir, encontrar alimentos literários menos pesados, mas que também possuam valor nutricional e sabor reconfortante, como, por exemplo, batatas fritas moles, que nunca mais serão vistas da mesma forma após a leitura dessa crônica…
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
Comment
[…] Ricardo Araújo Pereira, para a Folha de São Paulo para ler aqui. […]