Se atualmente a crônica se tornou um gênero literário de grande apelo, em especial no contexto de sala de aula, devido à sua dimensão reduzida e linguagem aparentemente mais simples, muitos foram os autores que a foram popularizando durante o século XX. Nomes como Fernando Sabino, Luís Fernando Veríssimo e Paulo Mendes Campos mostram, em seus retratos do cotidiano, aquele componente universal que todo bom cronista capta e transmite. Mas, aquele que fez da crônica o seu gênero por excelência, e um dos responsáveis por dar-lhe status de alta literatura, foi Rubem Braga.
Na crônica abaixo, na despretensão de recordar as interações que teve com o mar, Rubem Braga constrói a si próprio. E, em cada etapa da vida que se descreve, a figura do mar se apresenta como elemento incontornável. Na leitura, sugiro que se leiam algumas frases duas vezes, tamanha a expressividade e poeticidade presentes nesse texto em prosa.
Sem mais, vamos a ele:
MAR
(Rubem Braga)
A primeira vez que eu vi o mar eu não estava sozinho. Estava no meio de um bando enorme de meninos. Nós tínhamos viajado para ver o mar. No meio de nós havia apenas um menino que já o tinha visto. Ele nos contava que havia três espécies de mar: o mar mesmo, a maré, que é menor que o mar, e a marola, que é menor que a maré. Logo a gente fazia ideia de um lago enorme e duas lagoas. Mas o menino explicava que não. O mar entrava pela maré e a maré entrava pela marola. A marola vinha e voltava. A maré enchia e vazava. O mar às vezes tinha espuma e às vezes não tinha. Isso perturbava ainda mais a imagem. Três lagoas mexendo, esvaziando e enchendo, com uns rios no meio, às vezes uma porção de espumas, tudo isso muito salgado, azul, com ventos.
Fomos ver o mar. Era de manhã, fazia sol. De repente houve um grito: o mar! Era qualquer coisa de largo, de inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul. Nós todos gritamos, numa gritaria infernal, e saímos correndo para o lado do mar. As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes, cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o mar…
Depois o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza. Um menino de calças curtas, pernas queimadas pelo sol, cabelos cheios de sal, chapéu de palha. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da canoa, longe da terra, atrás de uma bobagem qualquer – como aquela caravela[1] de franjas azuis que boiava e afundava e que, afinal, queimou sua mão… Um rapaz de 14 ou 15 anos que nas noites de lua cheia, quando a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar perdidamente, eternamente, alguém que passava pelo areal branco e dava boa noite… Que andava longas horas pela praia infinita para catar conchas e búzios crespos e conversava com os pescadores que consertavam as redes. Um menino que levava na canoa um pedaço de pão e um livro, e voltava sem estudar nada, com vontade de dizer uma porção de coisas que não sabia dizer – que ainda não sabe dizer.
Mar maior que a terra, mar do primeiro amor, mar dos pobres pescadores maratimbas[2], mar das cantigas do Catambá, mar das festas, mar terrível daquela morte que nos assustou, mar das tempestades de repente, mar do alto e mar da praia, mar de pedra e mar do mangue… A primeira vez que saí sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti força e perigo, senti orgulho de embicar[3] numa onda um segundo antes da arrebentação. A primeira vez que estive quase morrendo afogado, quando a água batia na minha cara e a corrente do “arrieiro”[4] me puxava para fora, não gritei nem fiz gestos de socorro; lutei sozinho, cresci dentro de mim mesmo. Mar suave e oleoso, lambendo o batelão[5]. Mar dos peixes estranhos, mar virando a canoa, mar das pescarias noturnas de camarão para isca. Mar diário e enorme, ocupando toda a vida, uma vida de bamboleio de canoa, de paciência, de força, de sacrifício sem finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande perigoso mar fabricando um homem…
Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ora aflito, ora chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso, incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa, mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as desses em grandes ondas que arrebentavam – um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar…
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[1] espécie parecida com a água-viva; [2] do interior de Espírito Santo; [3] atravessar com a embarcação; [4] correnteza marítima; [5] canoa curta
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Sobre a crônica, o que se destaca, inicialmente, é a sua múltipla paternidade: ela descende do Jornalismo, pois traz um elemento informativo; também da História, pois se torna registro de acontecimentos; e, em especial, da Literatura, que usa as palavras (e máscaras) para ressignificar, extraindo novos sentidos e até mesmo profundidades da existência humana de fatos aparentemente triviais. Rubem Braga publica essa crônica em julho de 1938, mas os componentes jornalístico e histórico tornam-se secundários, frente à forte carga emotiva (e que ainda adquire sentido para leitores atuais) dessa relação do homem com o mar.
O impacto inicial da crônica se estabelece pela narração do primeiro encontro com o mar, definindo que as palavras do menino já iniciado (que já tinha visto o mar) de nada adiantavam e mais confundiam do que descreviam. Como se, diante do mar, nenhuma palavra se pudesse comparar.
Na sequência, o cronista lança um parágrafo para o louvor das maravilhas do mar, quando faz parte e molda uma espécie de essência lírica – e líquida – desse escritor. E assim há todas as explosões dos sentidos, tanto de dia, quanto de noite, em seus elementos naturais e na conexão com os pescadores. Interessante notar, na última frase desse terceiro parágrafo, que há, na solidão do menino na canoa – com o pão e o livro –, uma aprendizagem que não está no estudo da leitura, mas na irmanação com o mar, da qual ele volta maior do que ele mesmo e maior do que poderia se expressar.
Como contraponto, mostra o lado obscuro e tenebroso do mar, também capaz de forjar um caráter e construir uma força interna. No caso do cronista, ele evoca os múltiplos mares, inclusive o da morte. Então rememora as ocasiões de enfrentar o mar, reiterando o respeito devido e a compreensão das lutas que se travam nele e com ele.
Resultando, por fim, no “mar diário e enorme”, no “grande perigoso mar fabricando um homem…”, cujas reticências dão vazão à despedida da crônica, na figura do próprio homem, em evocação direta ao mar.
Em três frases, que se iniciam pelo mesmo “Este homem…”, exibem-se as fraquezas e incertezas do homem inserido na sua rotina mecanizada. Mas o cronista desloca-se, revelando que ainda existe, dentro dele, a força aprendida naquele mar e que ainda pode mover as suas ações. Pois esse homem é uma espécie de “filho do mar”, que carrega a intensidade daquele menino, na primeira vez que viu o mar estendendo-se diante dele.
A crônica é esse gênero degenerado que se disfarça de poema, de carta, de conto, de defesa de opinião, de receita, enfim, de qualquer outra coisa. No fim das contas, o que o cronista quer é expressar a sua visão particular das coisas cotidianas, revelando faces que, depois que ele apontou, nenhum leitor consegue manter o mesmo modo de ver.
Algo tão grandioso em textos que se insinuam despretensiosos.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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