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Mãezinha

novembro 7, 2017

A poesia de António Gedeão, pseudônimo de Rómulo de Carvalho, é um belo exemplo de equilíbrio entre duas esferas, a princípio, improváveis: as ciências e as artes. Isso acontece graças ao tratamento das palavras, como se no tópico descrito, geralmente algo trivial, colocando-se acentos de cunho químico, físico, biológico, matemático etc., o poeta descobrisse uma harmonia artística.

Após a leitura dos poemas desse autor, ao menos, boa parte, é possível dar um pequeno sorriso, que viria daquela alegria de ter lido algo interessante. No caso do poema abaixo, a ciência evocada é a matemática, por meio das porcentagens apontadas. Por certo que fazer as contas correspondentes não é a finalidade pretendida, mas ajuda a encaminhar para o efeito final. O que vale mais, nessa primeira leitura, é seguir o caminho do poeta.

Sem mais, vamos a ele:

 

MÃEZINHA

(António Gedeão)

 

A terra de meu pai era pequena

e os transportes difíceis.

Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem mísseis.

Corria branda a noite e a vida era serena.

 

Segundo informação, concreta e exacta,

dos boletins oficiais,

viviam lá na terra, a essa data,

3023 mulheres, das quais

45 por cento eram de tenra idade,

chamando tenra idade

à que vai do berço até à puberdade.

28 por cento das restantes

eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.

Umas, viúvas, que nunca mais (oh! nunca mais!) tinham sequer sorrido

desde o dia da morte do extremoso marido;

outras, senhoras casadas, mães de filhos…

(De resto, as senhoras casadas,

pelas suas próprias condições,

não têm que ser consideradas

nestas considerações.)

 

Das outras, 10 por cento,

eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,

mas que por temperamento,

ou por outras razões mais ou menos secretas,

não se inclinavam para o casamento.

 

Além destas meninas

havia, salvo erro, 32,

que à meiga luz das horas vespertinas

se punham a bordar por detrás das cortinas

espreitando, de revés[1], quem passava nas ruas.

 

Dessas havia 9 que moravam

em prédios baixos como então havia,

um aqui, outro além, mas que todos ficavam

no troço[2] habitual que o meu pai percorria,

tranquilamente no maio sossego,

às horas em que entrava e saía do emprego.

 

Dessas 9 excelentes raparigas

uma fugiu com o criado da lavoura;

5 morreram novas, de bexigas[3];

outra, que veio a ser grande senhora,

teve as suas fraquezas mas casou-se

e foi condessa por real mercê;

outra suicidou-se

não se sabe porquê.

 

A que sobeja[4]

chama-se Rosinha.

Foi essa que o meu pai levou à igreja.

Foi a minha mãezinha.

—

[1] de lado; [2] caminho, percurso; [3] varíola; [4]sobrou

***

 

Podemos perceber uma série de desvios que o poeta coloca ao leitor, até a “revelação” final, que já estava presente no título: começando pela terra do pai (possivelmente Oliveira do Hospital, no centro de Portugal), há uma aparente ruptura do discurso poético, inserindo-se uma informação do censo de mulheres; então se vão excluindo as porcentagens de mulheres que não se deveriam considerar, até restringir-se a somente nove, especificando-se cenas correspondentes, até, finalmente, chegar-se àquela uma: a futura mãe do poeta.

Na verdade, o que António Gedeão realiza é uma personalização imaginativa dos números frios da porcentagem. São as viúvas e mães de filhos (466, pelas contas), são as moças sem inclinação para o casamento (120, pelas contas), são as 32 possibilidades reais de casamento para o pai do poeta.

Um pormenor interessante é que os versos se vão costurando de tal forma em seu ritmo de conversa branda, que as rimas parecem se atrair de modo natural, sendo que somente um único verso não encontra rima (v. 16), não sendo necessariamente uma falha, pois na sequência o poeta se autointerrompe, como se aquele verso se encerrasse antes.

A partir da quarta estrofe, ocorre uma restrição de conjuntos, em que das 32 moças que bordavam e olhavam as ruas, somente 9 poderiam ser, efetivamente, prováveis mães, por poderem enxergar o pai do poeta em seu caminho para o trabalho. E dessas nove, com ações tão diferentes quanto uma ser condessa, outra se suicidar e outra, ainda, fugir com um rapaz, eis que a estrofe final coroa Rosinha como a única moça possível de ser a mãezinha.

Assim, nesse afunilamento lírico-percentual, António Gedeão se mostra capaz de descobrir, na massa de possibilidades de ter nascido, lances do destino para que seu pai encontrasse sua mãe.

Essa é a minha leitura. Como sempre, uma volta ao texto, agora que tais elementos foram sugeridos, é uma forma de se observar os jogos que estão ocultos, mas se revelam aos olhos atentos, como moças espiando por trás das cortinas numa aldeia de Portugal.

Espero que busque outros poemas de António Gedeão, especialmente esses em que a poesia científica se relaciona com uma ciência poética, como “Ode metálica”, “Poema do amor fóssil” e “Lição sobre a água”. E dessa forma, descubra que a literatura, de uma forma ou outra, consegue dialogar com tudo.

E pronto!

por Saulo Gomes Thimóteo

António Gedeãociênciapoemaséculo XX
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Literatura portuguesa

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Comment


Frederico Gama Carvalho
October 8, 2023 at 7:35 am
Reply

O pai de Rómulo Vasco da Gama Carvalho, meu avô paterno, chamava-se José Avelino da Gama Carvalho e nasceu em Tavira, em 1872.

Cumprimentos
Frederico Gama Carvalho



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