Há poetas que criam pérolas e que, a cada poema escrito, parecem dizer exatamente o que o leitor sente. Isso acontece devido ao fato da literatura não falar especificamente para uma pessoa, mas para aquilo que é universal e atemporal. É o que ocorre com Florbela Espanca (1894-1930), cujos sonetos estão entre as mais belas e harmônicas construções poéticas em língua portuguesa. (E grande fonte de inspiração para corações enamorados ou em tentativas).
Para além dos poemas já consagrados, Florbela também escreveu contos, reunidos em As máscaras do destino, publicado um ano após sua morte, em que a temática da morte (influenciada pela morte do irmão Apeles) se sobressai. Em ritmo de Finados, o conto abaixo, carregado de simbolismo, traz a estética florbeliana em toda a sua fluidez (Aliás, há muitas palavras que podem soar estranhas após um século, mas, antes de verificar o que significam no glossário, tente compreendê-las no sentido da frase).
Sem mais, vamos a ele:
A MORTA
(Florbela Espanca)
Isto aconteceu.
A Morta ouviu dar a última badalada da meia-noite, ergueu os braços e levantou a tampa do caixão. Desceu devagarinho, circunvagou em redor os olhos de pupilas sem luz; os outros mortos, bem mortos, dormiam pesadamente. Puxou para si a porta do jazigo[1] que dava para a noite. O vestido branco manchou o negrume das sombras. Fúnebres ciprestes[2], almas de tísicos[3] bailavam numa clareira uma macabra dança de roda. Avançou lentamente pela avenida soturna, voltando para eles os glóbulos vítreos[4] dos seus olhos sem luz. Parou um momento, clarão no meio de sombras, a ver um pequenino, nu e branco como um mármore grego, que piedosamente se entretinha a encher de lágrimas uma urna partida, onde as pombas viriam beber de dia. Um suicida, escavando a terra com as unhas, procurava o seu sonho, por que se tinha perdido.
As estátuas descansavam das suas atitudes contrafeitas. A saudade alisava as roupagens roçagantes[5], e sentava-se com a face entre as mãos, olhando vagamente a noite. Uma musa de curvas sensuais, num túmulo de poeta, cerrava languidamente[6] os olhos e fazia com a boca o gesto de quem beija. Um sapo enorme, de olhos magníficos como estrelas, lançava a sua nota rouca, refestelado[7] num fofo leito de lírios.
A Morta caminhava num passo de morta, um ciciar[8] de brisa na folhagem; os sapatinhos de cetim branco mal pousavam nas pedras do caminho; as pupilas sem luz não tinham olhar, e viam. A Morta sabia onde ia.
A Morta ia a lembrar-se, que os mortos também se lembram; na solidão do túmulo há tempo e sossego para lembrar; é lá que as virgens tecem as mais preciosas lhamas[9] dos seus sonhos. Para quem saiba ouvir, há vibrações de carnes mortas nos túmulos brancos das que morreram puras, como que um frêmito[10] brando de ervas a crescer…
A Morta ia a lembrar-se:
Sentia num êxtase sobre-humano, num assombroso sair de si, numa prodigiosa transfiguração de todas as fibras do seu ser, a pressão duns dedos quentes que lhe desciam as pálpebras sobre as pupilas paradas. Uma boca, que ela nunca sonhara tão macia e fresca, roçara-lhe a macieza e a frescura da sua, em beijos miudinhos, cariciosos, castos como aquelas gotas de chuva que nas tardes de verão, infantilmente, recolhia nas suas duas mãos estendidas.
Vestiram-na de branco, ungiram-na[11] de branco, envolveram-na numa nuvem de branco. Era branca a almofada de rendas onde lhe pousaram a cabeça, devagarinho, no gesto sagrado de quem pousa uma relíquia três vezes santa nas rendas dum altar. Branco, os sapatinhos de cetim, aqueles mesmos que mal roçavam agora as pedras do caminho. Branca, a grinalda de rosas de toucar que lhe prenderam a seda dos cabelos. Branco, o vestido, o seu último vestido do seu último baile. Brancos, os cachos de lilás, as rosas e os cravos que eram como asas de pombas a cobri-la. Branca, a caixinha de sete palmos pequeninos onde a mãe a deitou como a deitara anos a fio na brancura do berço.
E agora, as cartas do noivo, o retrato do noivo, as dulcíssimas[12] declarações do noivo. E, piedosamente, cuidadosamente, não fosse esquecer alguma pétala de flor, algum fiozinho dos seus lindos cabelos pretos, algum pedacinho de papel onde as queridas mãos morenas lhe tinham traçado o nome, tudo lhe levaram, como uma divina oferta a um ser divinizado. Tudo levou. Parecia que se tinha tornado de repente mais pequenina, mais imaterial, mais acolhedora, para que tudo lá coubesse, para que nada esquecesse, para que nada ficasse a gelar lá fora no frio glacial da indiferença deste mundo que transe[13] as almas e as coisas. Que lhe pudessem tudo, o caixão não pesaria mais por isso… Todo o ouro a jorros[14] das suas misteriosas quimeras[15], todos os fúlgidos brocados[16] tecidos dos preciosos metais, semeados das gemas cintilantes das suas miragens de amor, todas as altas torres brancas dos seus sonhos, tudo era tão leve, que a caixinha de sete palmos pesava menos que uma pena de colibri.
Depois, a tampa da caixinha tomou brandamente entre o ciciar dos soluços, e toda a brancura se apagou; uma noite de luar que se cerrasse em sombras…
E lá foi… Desceu os degraus da escada, balouçada no seu esquife[17] branco, com a cabeça tonta do perfume das flores e dos sonhos de amor encerrados com ela, como se lá tivessem encerrado, numa suprema oferta, todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois dela.
E lá a deixaram. A vaga[18] que a levara quebrara-se de encontro à praia, e o esquife, barco sem velas, dormia no porto ao abrigo dos vendavais, das medonhas invernias desencadeadas, das outras vagas maiores que se quebravam ao longe, num marulhar[19] incessante, no mar alto da vida. A morta podia dormir, a morta podia sonhar.
Silêncio. Um silêncio feito de fluidos rumorosos, do vago rastejar dum perfume, dum leve vapor de incenso pairando. Silêncio. Como um vago clarão de fogo-fátuo[20], como o rasto, a poalha[21] dum desejo imaterial, silêncio em torno da vasta catedral de sombras onde as sombras vestidas de branco pontificam pelas noites.
Os outros mortos, ao lado, dormiam pesadamente, descansadamente. Um dia tinham pendido os braços num gesto de fadiga e tinha ficado assim pelos séculos dos séculos. A Morta viu-os a todos e de nenhum se lembrou; o mundo ficava longe.
Começou depois o encantamento. Todas as tardes, à hora em que o crepúsculo, todo vestido de glicínias[22], descia com a doçura dumas pálpebras que se fechassem, o perfume das rosas, dos cachos de lilás, das recordações de amor encerradas com ela, fazia-se mais denso, corporizava-se, tornava-se nuvem, unguento[23] divino que a inundava, que a aromatizava toda. Os passos, letras de um poema que ela sabia de cor, mal se ouviam, perdidos ainda no coração da cidade, gritante, alucinada cidade dos vivos… mas, agora, vinham mais perto, distinguiam-se melhor, eram mais arrastados, tateavam o chão, tomavam posse das pedras do caminho da silenciosa cidade dos mortos.
Os sete palmos brancos onde as flores dormiam de encontro à carne branca da virgem eram como um enxame de abelhas de oiro: zumbiam lá dentro todas as litanias[24] de amor, batiam desvairadamente os corações dos cravos, abriam-se sedentas as pequeninas bocas das mil florinhas de lilás, aos seios pálidos das rosas aflorava uma onda levíssima de carmim.
A mão do noivo empurrava a porta do jazigo. Os outros mortos, ao lado, não o sentiam entrar; braços pendentes num gesto de fadiga, tinham ficado assim pelos séculos dos séculos.
Entre o vivo e a morta o diálogo era duma sobre-humana beleza.
Essência de almas, as almas tocavam-se e era tão cândido[25] e tão profundo aquele choque, que as misteriosas forças desse fluido criavam outros fluidos, sopros, hálitos de almas, destes que os predestinados sentem às vezes passar como asas invisíveis roçando um rosto na escuridão. Diálogo em que as bocas ficavam mudas, em que os sons eram imateriais e os gestos intangíveis[26] e o perfume, que é a alma dos sentimentos, não era mais pesado que uma essência de perfume.
O vivo e a morta falavam, e o que eles diziam não podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortos, aqueles que ao lado dormiam pesadamente, braços pendidos num gesto de fadiga pelos séculos dos séculos.
O perfume agora era mais brando, narcisava-se[27], palpitava ainda como um ruflar[28] de asas cansadas ao chegar ao ninho… A mão do noivo puxava para si a porta do jazigo… os passos perdiam-se ao longe na silenciosa cidade dos mortos, depois na alucinante cidade dos vivos, e tudo se aquietava. Aproximava-se o silêncio, que trazia pela mão, devagarinho, não fosse tropeçar, a noite cega.
Mas, uma tarde, a Morta esperou em vão, e esperou outra e outra e outra ainda em infindáveis horas de infindáveis tardes. Na caixinha de sete palmos onde os cravos e os lilases eram viçosos e frescos ainda, como se uma eterna madrugada os banhasse de orvalho, começaram a enlanguescer os perfumes, a desmaiar os seios nus das rosas; as cartas de amor amareleciam; os braços da virgem iam esboçando já o gesto de fadiga dos outros mortos que ao lado dormiam pesadamente.
Foi então que uma noite, mais cega ainda que as outras tardes que o silêncio trazia pela mão, uma noite em que ela sentia gotejar lá fora as lágrimas de todo um mundo de que se tinha esquecido, foi então que ela ergueu os braços, levantou brandamente a tampa do caixão, e desceu devagarinho… foi então que ela puxou para si a porta do jazigo que dava para a noite.
E a Morta lá foi pela soturna avenida, no seu passo, de manto a roçagar. Empurrou a porta apenas encostada – para que se há-de fechar a porta aos mortos?… – e saiu… e na cidade adormecida foi uma flor de milagre que os vivos sentiram desabrochar. Foram mais ternos os beijos das noivas; as mães sentiram mais calmos os sonhos dos filhos, como se a benção do céu descesse misericordiosa sobre os berços; os braços das amantes ampararam melhor as cabeças desfalecidas, e os que estavam para morrer tiveram pena da vida.
Atravessou ruas ermas[29], estradas solitárias povoadas de sombras mais vãs e fugidias[30] que ela era; procurou com as suas pupilas sem luz o clarão que as acendera, estendeu os braços a todos os gritos, andou de porta em porta, subiu a todos os lares, revolveu todas as agonias, debruçou-se em todos os abismos, penetrou o mistério de todos os sonhos. E cada vez as sombras eram mais vãs e fugidias, e os clarões iam-se apagando, estrelas-cadentes no negrume cerrado daquele Gólgota[31]. Nada!
Foi então que lhe chegou aos ouvidos um ciciar brandinho… Seriam passos? … Ruflar de asas?… Folhas de Outono tombando?…
E a Morta parou.
Marulho de ondas pequeninas. O rio.
Na taça de prata, cinzelada[31] a traços de maravilha pelas mãos dos gênios das águas, erguida ao alto por mãos misteriosas e invisíveis, dormia todo o azul do infinito. O seu vestido branco aureolou-se de sonho, teve tons azulados de nácar[32] e madrepérola, claridades fosforescentes de fogo-fátuo; como se lhe batesse de chapa todo o luar dos céus longínquos, lembrou um manto de Virgem; as mãos, num gesto de graça, foram duas minúsculas conchas azuis. Era ali.
Debruçou-se… Marulho de ondas… E a Morta foi mais uma onda, uma onda pequenina, uma onda azul na taça de prata a faiscar…
Isto aconteceu.
De manhãzinha, quando as pombas sedentas vieram beber as lágrimas na urna quebrada, quando o sapo, de magníficos olhos como estrelas, deixou o seu fresco leito de lírios, e a saudade se enrodilhou[34] de novo no suntuoso[35] túmulo de mármore, a soluçar, quando a musa de curvas sensuais moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade rígida das linhas austeras[36] e frias, quando enfim as sombras se esvaíram[37] na silenciosa cidade dos mortos, um caixão foi encontrado vazio, uma caixinha branca de sete palmos pequeninos, onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam pender as pálidas cabeças desmaiadas.
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[1] túmulo; [2] árvores comuns em cemitérios; [3] doentes (com tuberculose, pensando que, à época, era uma doença fatal); [4] esferas de vidro; [5] que se roçavam; [6] com sensualidade; [7] deitado prazerosamente; [8] suave barulho, sussurro; [9] tecido brilhante de ouro ou prata; [10] ruído; [11] limparam-na, purificaram-na; [12] muito doces; [13] instala-se; [14] num fluxo contínuo; [15] sonhos impossíveis; [16] tecido rico e brilhante; [17] caixão; [18] onda; [19] movimento e som do mar; [20] brilho passageiro; [21] poeira leve; [22] pequenas flores roxas; [23] óleo; [24] pedidos em forma de orações; [25] puro; [26] intocável; [27] admirar a própria beleza, como Narciso; [28] bater; [29] desertas; [30] que desaparece rapidamente; [31] lugar de sofrimento (na Bíblia, onde Jesus foi crucificado); [32] cor-de-rosa; [33] enrolar-se em si mesmo; [34]; [35] grandioso, imponente; [36] severas; [37] desapareceram
***
Um primeiro elemento que se destaca, em todo o conto, é a expressividade na composição das imagens, são os adjetivos (de um lado “soturno”, “solitário”, “ermo”, “macabra”, de outro “dulcíssimas”, “divinizado”, supremo”, “brandinho”) e as comparações (“de olhos magníficos como estrelas”, “o vago rastejar de um perfume”, “como se uma eterna madrugada os banhasse de orvalho”). Tudo se constrói para estabelecer uma dualidade: o ambiente macabro do cemitério onde a Morta está, a claridade que emana dela mesma, de sua história e de suas ações.
Pois na história da Morta, tão branca (como associação com a pureza, no oitavo parágrafo), o que ela carrega consigo, inclusive após a morte, é o amor que teve e que ainda possui pelo vivo, o noivo. Se o conto inicia já com a Morta levantando-se e passando pelos vários seres do cemitério, há um desvio narrativo e volta-se à origem, por meio das suas lembranças. Assim, surge o seu enterro, o silêncio que a cerca, e, no encantamento, surge a figura do noivo vivo, que vem até ela (inclusive empurrando a porta do jazigo, como forma de estar mais próximo a ela – não que tenha aberto o caixão, é uma conexão muito mais abstrata e espiritual do que feita em ações concretas). E assim há o diálogo em que as bocas estão mudas, sendo muito mais da essência de ambos, como almas que se conectam.
E se ele deixou cartas, um retrato, enfim, elementos que ainda a conectam à vida, por meio da figura do noivo, quando ele não vem mais a Morta se recusa a ficar como os outros mortos, fatigados, quietos, estáticos pela eternidade.
Aí é ela quem se levanta e vai em busca de seu noivo. E, símbolo máximo desse amor, ela não foi necessariamente em busca dele, mas vai andando pelas ruas e realizando uma “flor de milagre” entre os vivos. Como se todo o amor que ela nutria irradiasse e contaminasse de vida (mesmo vindo de uma Morta) todas as pessoas das proximidades, inclusive, penetrando “o mistério de todos os sonhos”.
Por fim, a Morta vê uma taça de prata (possivelmente uma fonte ou um chafariz com esse formato) e, envolvida por essa atmosfera de sonho e de amor, ela se mistura à própria água que ali estava, como se a sua essência se diluísse, ao alcance de todos.
O desfecho é que a Morta não está mais no seu caixão (“caixinha”, pois é mais condizente com ela), deixou apenas as coisas materiais de um amor, tornando-se um espírito que irradiava um sentimento maior do que ela.
Esse é um conto para se ler ocasionalmente, pensando-se não somente em questões de vida ou de morte, mas, sobretudo, na visão do amor como algo que transcende o plano físico e todos os planos.
E há-de se ler tudo que Florbela Espanca escreveu.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
Comment
Por favor, atualize com mais freqüência porque eu
realmente desfrutar da sua página do site blog.
Obrigado!