O primeiro texto aqui lido será uma crônica, publicada por José Saramago em 17 de maio de 1968, no jornal A Capital, numa seção chamada “Rua acima, rua abaixo”. Mais tarde, seria publicada no livro Deste mundo e do outro.
Antes da leitura, mas para não estragar demasiado as surpresas que o texto pode dar, peço apenas que atente às três esferas que Saramago estabelece para a comunicação e à cadência de verbos ou de substantivos que aparecem.
Sem mais, vamos a ele:
AS PALAVRAS
(José Saramago)
As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças[1]: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas[2] ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.
E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até o prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou se dispõem bambinelas[3] de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão – e por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta afixa o discurso que abriu a torneira do marco fontanário[4]. E as palavras escorrem tão fluidas como o «precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão[5]: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares.
Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra é erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra não mostra. A palavra disfarça.
Daí que seja urgente mondar[6] as palavras para que a sementeira se mude em seara[7]. Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que vale o silêncio do ato.
Há, também, o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.
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[1] carrapatos, ; [2] referente ao mel; [3] cortinas de enfeite; [4] chafariz; [5] conjunto de cantores, coro; [6] podar, cortar; [7] lavoura
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Como se vê, Saramago propõe um jogo metalinguístico, pois é a crônica tecendo comentários sobre o próprio ato de escrever. As três esferas anteriormente mencionadas, pela ordem, são: As palavras; Os discursos; O silêncio. E essas três são analisadas pelo cronista uma de cada vez.
As palavras servem para tudo. O que se sugere é que as palavras funcionam como modo de interação (seja ela boa ou má, elogiosa ou ofensiva). Algo na linha do que Drummond falaria em “Procura da poesia”, com as palavras tendo “mil faces secretas sob a face neutra”. No caso, a face neutra que Saramago coloca para as palavras, na crônica, revela-se como o excesso de palavras, inclusive com as suas contrárias.
Eis que as faces secretas são nomeadas como Os discursos, cujo nome deve ser entendido, especialmente, como as falas elaboradas para ocasiões. O autor cita uma série de situações em que os discursos se fazem, sugerindo um segundo sentido aos discursos: a intenção que se esconde por detrás das palavras. É assim que se pode usar das palavras tanto para “bambinelas de veludo”, quanto para “cortinas de fumaça”, que ou dão destaque ou ocultam.
De qualquer maneira, é lógico que os discursos são mais do que palavras encostadas umas às outras (e Saramago sabe disso…) É como se as palavras fossem apenas máscaras escolhidas para os discursos, e que também são muitos, tantos que não terminam e vão gritando para tentar ganhar uma discussão, inundando tudo como a água de “milhões de bocas”. Interessante apontar que a motivação possível para essa crônica tenha sido a inauguração (com o discurso habitual de todas as autoridades) de um chafariz, que o jornalista Saramago criou a associação entre a água e as palavras jorrando. – Enfim, devaneios de cronista, ou devaneios de professor interpretando…
Mas o encerramento da segunda esfera é a de que todas essas palavras e discursos atrapalham as comunicações, trazendo, no terceiro parágrafo, o paradoxo, isto é, o conflito de que as palavras não servem mais para comunicar (o que seria, a princípio, a sua própria razão de ser). Isso acontece, porque agora (em 1968, mas tão atual…) elas são máscaras e não mais reflexos.
O cronista, então, chega à conclusão de que é preciso agir para que as palavras voltem a ter sentido e ter valor. Ele usa de termos campesinos para criar essa imagem (lembrando de que sua infância e a figura central de seus avós está fixada na aldeia de Azinhaga, em Portugal): para que a sementeira se transforme em seara, para que aquilo que se plantou gere os frutos que se colham, é preciso mondar as palavras, ou seja, tirar as ervas daninhas, os galhos secos.
É então que surge a terceira esfera, e a mais importante: o silêncio. Na sequência de verbos elencados (escuta, examina, observa, pesa e analisa), mostra-se o papel primordial que o silêncio tem para uma real compreensão das palavras. Ao invés do grito, a “melodia calada” que faz fecundar as palavras, como se fossem sementes.
Jogando com a parábola bíblica do trigo e o joio (sim, Saramago era ateu, mas leu a Bíblia e usou todos aqueles verbos para entender as palavras), o cronista retoma o início do texto, com as palavras boas e as más, sugerindo que é preciso compreender as palavras para conseguir separar aquelas que dão frutos (pão).
Muitas coisas não foram mencionadas aqui. Várias expressões e jogos foram só apontados. Pois é impossível conseguir explicar tudo que o texto (qualquer texto) transmite, refere e evoca. Essa é a minha leitura. Gostaria de que fizesse a sua mais uma vez. Afinal, segundo sugestão do próprio Saramago, com relação a toda a sua obra: leia duas vezes, e como se falasse em voz alta.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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[…] as palavras são muitas (como já apresentado no primeiro texto publicado nesse site, disponível aqui) e os entendimentos são infinitos. Mas cabe ao poeta não desanimar, assim como o leitor, e seguir […]