O texto aqui lido é um soneto do período Barroco (século XVII), de Gregório de Matos. Enquanto uma boa parte da poesia do período buscava um rebuscamento de palavras e jogos de linguagem, Gregório de Matos une esse mesmo cuidado na construção poética com temas que vão desde a religiosidade cristã e a mitologia greco-romana até sátiras brutais e diretas a pessoas da alta sociedade e do povo (esse último fazendo com que recebesse o apelido de “Boca do Inferno”).
Esse soneto, em particular, ganhou versão musicada por José Miguel Wisnik, depois regravada por Mônica Salmaso e também por Maria Bethânia (essa última constando na trilha sonora da novela Velho Chico, em 2016). Antes da leitura, peço especial atenção ao jogo de ecos, em que a palavra final de cada verso, na verdade, é uma parcela da palavra anterior.
Sem mais, vamos a ele:
NO SERMÃO QUE PREGOU NA MADRE DE DEUS D. JOÃO FRANCO DE OLIVEIRA, PONDERA O POETA A FRAGILIDADE HUMANA
(Gregório de Matos)
- Na oração, que desaterra… a terra,
- Quer Deus que, a quem está o cuidado… dado,
- Pregue que a vida é emprestado… estado,
- Mistérios mil, que desenterra… enterra.
- Quem não cuida de si que é terra… erra,
- Que o alto Rei, por afamado… amado,
- É quem lhe assiste ao desvelado… lado,
- Da morte ao ar não desaferra,… aferra.
- Quem do mundo a mortal loucura… cura,
- A vontade de Deus sagrada… agrada
- Firmar-lhe a vida em atadura… dura.
- Ó voz zelosa, que dobrada… brada,
- Já sei que a flor da formosura,… usura,
- Será no fim dessa jornada… nada.
Como acontece com muitos poemas barrocos, que aparecem com títulos grandes (por vezes quase maiores que os próprios poemas…), o título funciona como uma explicação resumida do que será o tema do poema. Nesse caso, pensando-se que D. João Franco de Oliveira foi arcebispo de Salvador de 1692 a 1701, Gregório de Matos estaria no final da vida quando ouviu o sermão. Isso, por certo, contribuiu para um estado de espírito meditativo em torno da vida humana.
Inicialmente, vê-se que o soneto se estrutura em quatro frases, dispostas uma em cada estrofe. Em síntese, eis a evolução da proposta do poema: 1) Na oração do arcebispo, ouve-se que a vida é passageira; 2) Mostram-se tanto a falha dos homens em esquecerem-se que morrerão, quanto o amparo que Deus confere na iminência da morte; 3) Em contraposição aos homens da estrofe anterior, aponta-se a graça de Deus àquele que se afasta dos males do mundo e mantém-se na retidão; 4) Em um regresso ao início do sermão, evocando o arcebispo, o poeta encerra apontando o destino de todas as vidas: a morte.
Desviando um pouco do conteúdo e observando a forma, a primeira questão que se coloca é a de que o soneto, decassílabo, recorre muitas vezes ao hipérbato (figura de linguagem em que se inverte a ordem direta da frase: sujeito, verbo, complemento). Esse uso, além de contribuir para o rebuscamento textual, é o que proporciona as dez sílabas poéticas, a musicalidade, a rima etc. Transpondo em ordem direta (com algumas adequações ou referências), pode-se dispor o poema assim:
- Na oração, que desaterra [assola] a terra, Deus quer que aquele [o arcebispo] a quem foi dado o cuidado [de falar aos homens] pregue que a vida é um estado emprestado, cercado de mil mistérios, e que tanto desenterra [traz à vida e à superfície] quanto enterra [morre];
- Aquela pessoa que não percebe que é terra [pó] erra, e o alto Rei [Deus], grandioso e amoroso, é quem ajuda a revelar esse lado, pois todos devem prender-se à ideia de que quem morre separa-se do mundo físico;
- Quem cura a mortal loucura do mundo agrada a vontade sagrada de Deus, tendo a vida firme e segura [nos princípios de Deus];
- Ó voz zelosa [do arcebispo] que brada dobrada [como quando os sinos tocam], eu sei que a flor da formosura e de interesses vai se tornar em nada no final dessa jornada.
Pode-se notar que há uma grande perda da musicalidade nessa transposição. Mas, em uma nova leitura do soneto, já se percebem as frases e as inversões não mais como obstáculos, mas como construções poéticas a se desvendarem.
Outro elemento, embora não mencionado diretamente, é a evocação a Gênesis 3:19, quando Deus expulsa Adão, dizendo “Tu és pó e ao pó da terra retornarás”. Essa imagem acaba por acompanhar todo o poema, buscando-se a terra como sinônimo do corpo, da vida terrena.
Contudo a melhor coisa do poema, por certo, é esse cuidado que Gregório de Matos teve não apenas em enfocar o conflito barroco da vida e morte, material e espiritual, pecado e perdão, mas a construção do final de cada verso como um eco (de sino?) que, mesmo sendo um desmembramento da penúltima palavra, ainda mantém um significado. Cada verso traz essa estratégia, o que desenvolve um jogo interessante, inclusive de trocas de classes gramaticais, com substantivos e adjetivos gerando verbos, “terra… erra” (v. 5), “loucura… cura” (v. 9), “sagrada… agrada” (v. 10), “dobrada… brada” (v. 12). Além disso, chama a atenção a escolha das rimas, com as consoantes “r” e “d”, mantendo certa linearidade nos sons finais, persistindo essa noção de ecos e de prolongamentos.
E o soneto se encerra com a imagem da “flor da formosura” tornando-se, no fim da jornada, “nada” – lembrando do eco entre as duas palavras e, ouvindo qualquer uma das versões musicadas, há uma bela suspensão antes da palavra derradeira, que parece se prolongar para além do poema.
Essa é a minha leitura. Como os bons poemas barrocos, sugiro que o leia novamente, pois talvez muitas coisas e frases que estavam obscuras se esclareçam. Ou não. O que importa é enfrentar os poemas que exigem do leitor uma atenção aos jogos que se propõem.
Espero que busque outros poemas que Gregório de Matos produziu, como por exemplo “Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República, em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia”, também conhecido como “Epigrama”, com algumas estrofes musicadas por Rappin Hood com o título de “Verdade Vergonha”. Lembrando que Gregório de Matos é do século XVII, mas as críticas desse poema ainda se mantêm contundentes…
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
7 Comments
[…] título, como também visualizado na outra análise, disponível aqui, traz consigo uma síntese do que o poema tratará: o pedido de louvor que o Conde de Ericeira […]
Sua leitura me fez lembrar da prova de faculdade, a qual eu nao poderia faltar. Comprei o livro do Gregorio a caminho da aula, li o prefacio, a introducao, uns 3 poemas de cada vertente do autor, e me fui, com a cara e a coragem (ou com a falta de vergonha mesmo!) para a fatidica prova – a professora era um cao chupando manga. Temiamos todos ter de relatar datas e detalhes de vida tao rica, mas como Gregorio de Matos me fazia rir e chorar, enfrentei a dita professora com coragem e desvario. Os colegas estavam certos de que eu estaria em maus lencois, pois faltara a muitas aulas por conta de trabalho – ja era professora entao.
A dita cuja entrou em sala, deu-nos uma folha a cada aluno, escreveu no quadro (naqueles tempos inda era verde) uma unica questao subjetiva…
Escrevi um poema comparando os estilos do autor. Pensei que seria minha morte; tirei o 10 mais almejado da faculdade. Os colegas? Coitados! Sabiam de datas, locais, trabalhos diversos, promocoes e demissoes do autor. Mas nao sabiam fazer poemas…
Amei sua leitura!!! Contextualizou tao bem o belissimo texto, que, por longos instantes me calei absorvendo a licao.
Que raro prazer poder ler uma sintese inteligente, bem informada e, no entanto, sensivel. Muito obrigada!!!
PS: um velho computador estrangeiro e analfabeto em portugues me faz passar outra vergonha: acentos, cedilhas, falhas desagradaveis. So posso perdir um humilde perdao por isto.
Após a leitura, um imenso arrepio….. Muito sensível, profundo o seu comentário.
Que perfeição! Só agora estou descobrindo as obras e autores brasileiros. Sinto tristeza por não ter tido acesso antes.
Excelente leitura e argumentos bem embasados. Foi crucial para o meu trabalho de literatura, muito obrigada!
Linda leitura! Ver seu apreço pela literatura brasileira e barroca é um conforto no coração. Agradeço também por mencionar sobre Gênesis 3:19, revelando a base bíblica de Gregório para o poema. É uma alegria ver que considera positivamente a fé cristã, que é tão basilar nesta obra.
Continue com essa análise excelente. Deus abençoe todos vocês, amigos leitores!
BRILHANTE!