Um professor lê e compartilha suas leituras. Um professor deve multiplicar suas leituras, para que seus alunos também se tornem leitores e também compartilhem suas leituras. Com isso, esses alunos também se tornam professores que leem.
Como postagem especial de fim de ano, socializamos as produções de podcasts pelos acadêmicos das aulas de Literatura Portuguesa, que aceitaram o desafio de fazerem, eles mesmos, um podcast desde a concepção do que falar, do roteiro do que se vai falar, da gravação, lutando com o volume dos passarinhos ao fundo e com os ecos dos diferentes lugares da casa, do programa para encaixar a trilha nas suas falas.
Podemos não ser profissionais, mas o que se vê (ou melhor, se ouve) abaixo são exercícios de leitura de poetas portugueses que vão desde os tempos medievais até os contemporâneos.
Espero que gostem e que as nossas falas possam servir de estímulo e curiosidade para buscarem outros poemas desses autores, ou outros tantos que deslizam por aí, despertando a poesia das coisas e à espera de ouvidos que ouçam e de olhos que leiam.
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Al Berto (1948-1997)
Pseudônimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, é um poeta em que a concisão e a expressividade artísticas se fazem notar com grande força. Lançando metáforas e frases numa torrente, capta o leitor para tentar fazê-lo enxergar para além das palavras e das coisas, atingindo um além.
“QUANDO AQUI NÃO ESTÁS”
Quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer
a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas
um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz
quero morrer
com uma overdose de beleza
e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador
por Tainara Carolina Weimer
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Antero de Quental (1842-1891)
Poeta máximo do Realismo português, ao lado de nomes como Eça de Queirós e Ramalho Ortigão fazem a Geração de 70, também chamada de Vencidos na Vida. Com uma obra que vai do profundo combate social e anseio pela elevação da cultura e do povo português até a busca metafísica por Deus e um combate à melancolia e angústias, ler Antero de Quental é ler alguns dos mais belos sonetos escritos em língua portuguesa, pela sonoridade, pela força e pela construção poética.
INTIMIDADE
Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela – e se te não comparo a rosa,
E que a rosa, bem vês, passou de moda…
Anda-me às vezes a cabeça à roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.
Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!
E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo,
Juras – mentindo – que me tens amor…
Por Francisca de Oliveira Souza
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António Ferreira (1582-1569)
Um dos principais poetas do Classicismo português, seus poemas são referência na construção verbal e jogo de imagens, da mesma forma que sua obra mais conhecida é A Castro, tragédia que reconta a vida e a morte de D. Inês de Castro e seus amores com Dom Pedro de Portugal.
Quando entoar começo com voz branda
Vosso nome de amor. Doce, e suave,
A terra, o mar, vento, água, flor, folha, ave
Ao brando som se alegra, move, e abranda.
Nem nuvem cobre o céu, nem na gente anda
Trabalhoso cuidado, ou peso grave,
Nova cor toma o Sul, ou se erga, ou lave
No claro Tejo, e nova luz nos manda.
Tudo se ri, se alegra, e reverdece.
Todo mundo parece que renova.
Nem há triste planeta, ou dura sorte.
A minh’alma só chora, e se entristece,
Maravilha de Amor cruel, e nova!
O que a todos traz vida, a mim traz morte.
Por Marcieli Parlow
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Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805)
Poeta central do Arcadismo português, embora já carregue características pré-românticas, seus sonetos figuram como dos mais bem elaborados em toda a língua portuguesa. Com um estilo que vai desde os mais altos suspiros de amor até as mais ácidas críticas a todos que assim mereçam, sua obra deve ser lida e redescoberta pelas novas gerações, pela força que ainda conserva na música de seus versos.
“POR ESTA SOLIDÃO, QUE NÃO CONSENTE”
Por esta solidão, que não consente
Nem do sol, nem da lua a claridade,
Ralado o peito pela saudade
Dou mil gemidos a Marília ausente:
De seus crimes a mancha inda recente
Lava Amor, e triunfa da verdade;
A beleza, apesar da falsidade,
Me ocupa o coração, me ocupa a mente:
Lembram-me aqueles olhos tentadores,
Aquelas mãos, aquele riso, aquela
Boca suave, que respira amores…
Ah! Trazei-me, ilusões, a ingrata, a bela!
Pintai-me vós, oh sonhos, entre as flores
Suspirando outra vez nos braços dela!
por Dieime Taina Paz da Silva e Ingrid Vitoria Dias Freire
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Camilo Pessanha (1867-1926)
Considerado o expoente máximo da poesia simbolista portuguesa, é um poeta que influenciou boa parte da literatura em Portugal no século XX. Em seus poemas, na melhor tradição do Simbolismo, a sugestão de elementos, sua ambiguidade e sua pulverização vão se produzindo em seus poemas em versos carregados de sonoridade e luz. Fluindo como a água, ondulando como o vento, ler Camilo Pessanha é adentrar num mundo outro, mais etéreo e metafísico.
CANÇÃO DA PARTIDA
Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro…
Lançá-lo ao mar
Quem vai embarcar, que vai degredado,
As penas do amor não queira levar…
Marujos, erguei o cofre pesado,
Lançai-o ao mar.
E hei de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta…
— A última, de antes do teu noivado.
A sete chaves — a carta encantada!
E um lenço bordado… Esse hei de o levar,
Que é para molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.
Por Vanessa Fatima Mayer
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Eugénio de Andrade (1923-2005)
Pseudônimo de José Fontinhas, é um poeta da transposição do corpo em palavra, da captura poética do instante em visões alegóricas. Com suas imagens, ritmos e evocações, busca atingir a compreensão do ser humano, como indivíduo fragmentado em meio às diferentes máscaras sociais que se vão usando.
ADEUS
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os teus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor…
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
por Marieli Cristina Ribeiro e Mayara Nonnenmacher
Fernanda Botelho (1926-2007)
Com um estilo incisivo, recheado de ironias, críticas, e que nos leva ao permanente questionamento de quem somos e onde estamos, a poeta constrói versos como quem desvenda o homem em suas faces mais secretas, evocadas a partir de elementos triviais e cotidianos.
AMNÉSIA
Posso pedir, em vão, a luz de mil estrelas:
penas obtenho este desenho pardo
que a lâmpada de vinte e cinco velas
estende no meu quarto.
Posso pedir, em vão, a melodia, a cor
e uma satisfação imediata e firme:
(a lúbrica face do despertador
é quem me prende e oprime).
E peço, em vão, uma palavra exata,
uma fórmula sonora que resuma
este desespero de não esperar nada,
esta esperança real em coisa alguma.
E nada consigo, por muito que peça!
E tamanha ambição de nada vale!
Que eu fui deusa e tive uma amnésia,
esqueci quem era e acordei mortal.
por Mateus Francisco Chagas e Patrícia Alexandra da Silva Melle
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Fernanda de Castro (1900-1994)
Poeta solar, que demonstra em seu estilo uma face de alegria e riso em meio às névoas do momento presente. Profundamente ligada às tradições da terra e do folclore português, sua obra é um canto de louvor à força que a poesia tem diante das durezas do mundo.
ALMA, SONHO, POESIA
Entrei na vida
com armas de vencida;
alma, sonho, poesia.
quando eu cantava
o mundo ria
mas nada me importava:
cantava.
Depois, um dia,
o mundo atirou pedras ao meu canto
e a minha alma rasgou-se.
Que seria?
medo, espanto,
revolta ou simplesmente dor?
Fosse o que fosse,
o orgulho foi maior.
Com dez punhais nas unhas afiadas
e nos olhos azuis duas espadas,
eu nunca mais seria, nunca mais,
a que entrara na vida
com armas de vencida.
Agora o meu querer era mais fundo:
de um lado, eu, do outro, o mundo.
e começou a luta desigual
do tigre e da gazela.
A vencida foi ela.
Mas que louros colheu dessa vitória
o mundo cego e bruto?
O sangue dos poetas? Triste glória…
Cinza de sonhos mortos? Magro fruto…
Oh, não, punhais e espadas!
Eu só quero cantar! Não quero ossadas
nem, sob os pés, um chão de campas rasas.
Eu só quero cantar! Só quero as minhas asas
e a minha melodia:
Alma, sonho e poesia…
Alma, sonho e poesia…
Por Carine da Silva e Luana Sabrina Avila Ferreira Socolloski
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Florbela Espanca (1894-1930) e Miguel Torga (1907-1995)
Estes dois poetas são figuras centrais da literatura portuguesa do século XX. A primeira, uma das mais importantes sonetistas em língua portuguesa, produz poemas altamente musicais e imagéticos, em que oscilam os conflitos internos do Eu, a busca pelo Amor e pela compreensão feminina de si mesma. O segundo, pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha, é reflexo da existência ligada à terra portuguesa, com seus poemas e contos demonstrando a grande humanidade que brota em cada mínimo ser, e de como todo indivíduo carrega consigo uma centelha do universal.
NEURASTENIA
(Florbela Espanca)
Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim Ave-Maria!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza…
O vento desgrenhado chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza…
Chuva… tenho tristeza! Mas porquê?!
Vento… tenho saudades! Mas de quê?!
Ó neve que destino triste o nosso!
Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso!!…
TRANSFIGURAÇÃO
(Miguel Torga)
Tens agora
outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda…
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina…
Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa….
Todas as deusas são mulheres ausentes…
Por Maria Clara Socovoski da Gama e N. Maythana dos Santos Thomazini
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José Régio (1901-1969)
Escritor múltiplo e um dos principais divulgadores da cultura e da poesia portuguesa na metade do século XX, foi um dos nomes fundamentais da revista Presença. Sua obra se espraia em contos, poemas e peças teatrais, e em tudo isso se revela um autor preocupado em revelar as máscaras ocultas do indivíduo, em seus conflitos íntimos com Deus e com os homens.
POEMA DO SILÊNCIO
Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.
Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.
Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!
Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo…
O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!
Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.
Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!
Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição…)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.
Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!
Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.
Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista…
Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá…
Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.
Por Elen Cristina Finger
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Maria Teresa Horta (1937-)
Autora de grande importância na literatura portuguesa contemporânea, sua obra eleva-se como importante voz na defesa das questões feministas, na busca por uma identidade e uma representação. Se o livro Novas cartas portuguesas, escrito em parceria com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, foi obra fundamental para o questionamento da cultura ultrapassada que a ditadura portuguesa ainda preconizava. Ler Maria Teresa Horta é fundamental para compreender o papel feminino na sociedade, não apenas portuguesa, mas mundial.
MINHA SAUDADE
Minha saudade
corpo de beber
meu corpo- vidro
tão desenganado
à transparência só sei
de sofrer
planta que trato
com tanto cuidado
Minha saudade
minhas ancas breves
na cama certa
tão anoitecida
desperta a causa
e desperta a língua
a procurar o meu prazer
na ferida
por Gabriel Bevilacqua e Patrícia Alves da Silva Corazza
***
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)
Poeta fundamental do Modernismo português, ao lado de Fernando Pessoa lançaram as bases de uma nova poesia em Portugal, por meio da revista Orpheu. Com um estilo em que o Eu aparece fragmentado, numa tentativa de compreender-se e revelar quem é, ou quem pensa ser, ou quem deseja ser. Um caleidoscópio das vanguardas europeias do começo do século XX, sua obra é ponto importante da compreensão de uma época que até hoje se reflete e se dispersa.
DISPERSÃO
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
(Os Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.
A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro –
Não me acho no que projecto.
Regresso dentro de mim,
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi… Mas recordo
A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!…)
E sinto que a minha morte –
Minha dispersão total –
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas…
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas…
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar…
Ninguém mas quis apertar…
Tristes mãos longas e lindas…
E tenho pena de mim,
Pobre menino ideal…
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!…
Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço…
por Ana Paula de Vargas e Rosaline Dias da Silva
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Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e Jorge de Sena (1919-1978)
Dois poetas fundamentais do final do século XX, cada um a seu modo revela faces do que é ser português, projetando-se num universal. Sophia produz uma obra de amplo espectro temático, indo dos elementos míticos e mitológicos, com evocação à Grécia e aos ideários helenísticos, à crítica social, no contexto da Revolução dos Cravos. Jorge de Sena, por sua vez, projeta Portugal num misto de sonho e desilusão, se não se reconhece na pátria da qual se afastou, também não consegue se desvencilhar de todo, tornando-se um estrangeiro de toda parte.
CIDADE
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.
“AMOR, SAUDADES TENHO DESTA VIDA”
(Jorge de Sena)
Amor, saudades tenho desta vida.
Por mais que a viva ou a deteste, ou ranja
de raiva os dentes por não estar saciado
do que ela mais recusa a quem deseja mais,
tenho saudades já. Quando morrer,
não hei-de tê-la e não terei saudades:
agora sim que a sinto devorar-me
e tanto quanto se me esvai no tempo
o tanto que devoram quando ela passa.
Amor, dá-me a tua mão, aperta a minha:
saudades tenho desta vida, amor.
por Ricardo Luigui Zivko e Vinícius Ricardo Otelakoski Vidoto
Comment
Parabéns aos acadêmicos. O resultado dos estudos com certeza mostram que há uma sintonia entre alunos e professor. Num país tão carente de senso crítico e atitudes positivas, as análises dos poemas tornam-se se um bálsamo para nossa alma. Continuem na caminhada, pois precisamos de cidadãos cada vez mais humanizados e questionadores às desumanidades da atualidade.