José Saramago já avisou, na crônica “A neve preta”, que é preciso cuidado com as crianças, especialmente pelo modo que elas veem o mundo e surpreendem a esses adultos que não enxergam o que existe para enxergar.
Essa conexão infantil, no caso desse cronista, possui uma referência que vem da própria memória de uma criança na aldeia, entre toda a sua família de adultos. É uma história de natal, no sentido de que é a data em que há a reunião de todos, há as tradições e festejos, mas também no sentido de nascimento, não apenas de Jesus, mas na espécie de estreia e despertar da própria criança, diante dos parentes, do mundo todo e de si mesmo.
Sem mais, vamos a ela
UM NATAL HÁ CEM ANOS
(José Saramago)
Quem diz cem, diz mil. Ou quarenta. Enfim, uma eternidade. A terra está esmagada de negrume. Não chove, as tempestades andam longe: o ar parado é denso de frio e parece estalar como uma rede ténue de cristais suspensos. Há uma casa e luz dentro dela. E gente: a Família. Na chaminé ardem toros de lenha em fogo brando que de repente se encrespa quando se lhe juntam gravetos secos. Então a labareda cresce, divide-se, sobe pela chaminé encarvoada, ilumina os rostos da Família e logo volta a quebrar-se. Ouve-se melhor o ferver das panelas, o frigir do azeite onde boiam as formas antigas das filhós[1], entre o fumo espesso e gorduroso que vai entranhar-se nas traves do telhado e nas roupas húmidas. São talvez onze horas, a mesa está posta, o momento é de paz e de conciliação – e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos trabalhos, como um formigueiro. Não tarda que todos saiam para o quintal. Agora vai ser lançado o foguete que anuncia aos vizinhos que naquela casa já a última filhó saiu do tacho, a escorrer, e foi cair no alguidar[2] profundo, onde este produto da doçaria caseira aguarda o requinte final da canela e do açúcar. Entre portas, a Criança vê a Família a sorrir, fazendo e desfazendo grupos em volta do Avô que sopra um tição e o aproxima do pedaço de cana recheado de pólvora.
Tinha pedido que o deixassem ajudar, mas não consentiram: é preciso cuidado com as crianças. A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jato de faúlhas[3], assobia – e o foguete dispara para o ar gelado, corta-o como uma espada de fogo, e lá muito no alto estraleja, sonoro, entre os ecos doutro foguete distante. O caniço desce com uma luz que desmaia, mortiça, e vai cair longe, nos olivais, sobre a relva coberta de geada. Não há perigo de incêndio. De súbito, a Família sente o frio e torna a casa, levando entre os braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a Criança que não pudera ajudar a lançar o foguete. O interior da cozinha arrefeceu[4]. A Avó atira uma mão-cheia de aparas[5], e o lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha e, mansamente, recomeça o seu trabalho de destruição. A Família gira em redor da mesa, com muitos rostos corados e sorridentes, que têm nomes mas são, antes de tudo, para a Criança, os Pais, os Avós, os Tios, os Primos – um corpo de animal complicado que lhe lembra a história da Bicha de Sete Cabeças ou o Dragão-Que-Não-Dorme. Sobre a mesa há, neste momento, uma batalha de mãos, de dentes, de mastigação que deforma os rostos. Contam-se casos, anedotas, todos riem. O frio está lá fora, e a geada, e a noite impenetrável. A Criança anima-se, já esqueceu a deceção, para o ano talvez a deixem lançar o foguete sozinha. Tem também uma história para contar, e vai contá-la. Só está à espera de uma pausa, de uma ocasião em que todos se calem, para ajustar a sua pequena e trémula voz, porque a história é importante, muito mais do que a Família julgaria. Então, o momento aproxima-se, a Criança prepara-se, é agora – começa a falar. A Família olha, espantada, dá a atenção que pode, mas não dura muito, não pode durar, e alguém corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma frase que vai fazer chorar a Criança.
Porque a Criança levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, assim como uma varanda que desse para terras desconhecidas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e sente desfazer-se dentro de si o terrível nó das lágrimas. Da casa vêm risos e vozes, alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Está muito frio. O céu é alto e profundo. Visto dali parece feito de veludo negro, se fosse possível chegar-lhe com a mão. E há as estrelas. Duras, nítidas, implacáveis, quase ferozes. A Criança levanta os olhos. Lá estão elas a brilhar. Vistas através das lágrimas são diferentes. Que mundo estranho, este! Sob os passos da Criança, o chão estala. E, em frente, as árvores negras, vagamente assustadoras, tomam o ar confidencial de quem conhece os segredos todos
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[1] bolinho tradicional português, feito de farinha e ovos, frito e polvilhado com açúcar e canela; [2] bacia; [3] fagulhas, faíscas; [4] esfriou; [5] pedaços de madeira
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A eternidade das lembranças infantis independe de lugar ou época, justamente por se situar naquele espaço indefinido da formação de sua própria consciência. O cenário que o cronista apresenta, desse “ninho” familiar e das suas tradições, ao mesmo tempo é o seu, evocado das brumas da memória, mas também é o da Criança, indefinida e, portanto, associável a qualquer pessoa.São as andanças da Família que, como um ser único, se movimenta para a ceia de Natal, é o Avô, o dono da grande expectativa da explosão dos fogos, enfim, é a Criança captando com os seus sentidos (visão, audição e olfato, sobretudo) aquela cena doméstica e eterna.
Mas essa crônica é, sobretudo, a do nascimento de si. E como não pode deixar de ser, nascer passa por obstáculos e desafios vários, além de alguma dose de sofrimento. Que a Criança passa, ao não deixarem que ajude com os fogos. E depois, na mesa da ceia, em que todas as pessoas têm o seu momento de fala, de riso, dos “casos e anedotas”, exceto a Criança. Ao rompante de coragem que Saramago descreve, da Criança desejar participar da mesa e dos discursos dos adultos (quem nunca, em sua época?), sucede a frustração do corte na narrativa e do riso decorrente.
É então que a crônica se encerra, com a separação da Criança de seu lugar seguro e entrada no mundo. O muro no qual ela se apoia, para chorar e tentar refazer suas ideias, é branco, fazendo um grande contraste com a noite muito negra. E se lá dentro da casa a Família ainda mantém-se nas gargalhadas do Natal, ali fora acontece o nascimento da consciência dessa Criança diante do mundo, que se abre a ele, repleto de segredos que se devem buscar.
A vida é isso, uma sucessão de desafios e frustrações que se enfrentam, no sentido de que, ao vencê-las, cada um se torne mais forte e, de certo modo, em um novo e contínuo nascimento.
E pronto!
Feliz Natal!
por Saulo Gomes Thimoteo
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