Tarsila do Amaral (nascida em 1º de setembro de 1886) foi uma das artistas mais revolucionárias da arte brasileira – e mesmo mundial. Sua visão modernista das paisagens brasileiras, em associação a uma vontade de absorver diversas culturas, especialmente a francesa, traduz-se em seus quadros e desenhos.
Ela também foi cronista, escrevendo ao longo das décadas de 1930 e 1950 para o jornal O Diário de S. Paulo, textos sobre artistas, arte e cultura em geral. Dentre elas, uma que chama a atenção é a crônica “Descobri a Odisseia”, com a relação conflituosa da grande modernista com Homero, o maior de todos os autores clássicos, e com a história incomparável de Ulisses com os deuses e monstros gregos.
Sem mais, vamos a ela:
DESCOBRI A ODISSEIA
(Tarsila do Amaral)
Diário de S. Paulo, domingo, 8 de agosto de 1948
Há precisamente 11 anos recebi de um amigo o presente de um livro, acompanhado das seguintes palavras: “É uma delícia a leitura desse poema. Não perca tempo.” Era a Odisseia, numa tradução de Leconte de Lisle. Abri a primeira página e li: “Dis-moi, Muse, cet homme subtil qui erra si long-temps, après qu’il eut renversé la citadelle sacrée de Troilé. Et il vit les cités de peuples nombreux…” [Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito peregrinou, desde que desfez as muralhas sagradas de Troia; muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus costumes…]
Não. Não dou para essas leituras. Essas Musas, esses Deuses do Olimpo são fastidiosos[1], disse comigo, e esta Odisseia, atravancando minhas estantes, está me parecendo um presente de grego.
Entretanto, com o respeito devido aos livros em geral – e principalmente a Homero, para seguir a tradição – coloquei a Odisseia no seu devido lugar.
Fiz viagens e algumas mudanças, arrebanhando[2] comigo o Homero ao lado dos 17 volumes gordos e pesados do Grand Larousse[3] – meus 17 elefantes, segundo a nomenclatura de outro amigo, conhecedor de minha mania de ler e colecionar dicionários.
Anos após anos se passaram e somente em dezembro de 47 peguei de novo na Odisseia, com a firme resolução de transpor a tal primeira página. Fui pegando gosto pela leitura. Que delícia! Que ingenuidade encantadora, que enredo fantástico! Minha vontade, ao sair de casa, era voltar logo e correr para a Ítaca cercada de ondas; queria ouvir os discursos da sempre jovem e linda Penélope ou do seu ilustre e prudente filho, Telêmaco, ambos derramando abundantes lágrimas pelo divino Ulisses desaparecido. Já me sentia bem aclimatada naquelas cidades onde o forasteiro era recebido com todas as honras da hospitalidade, banhos, unções[4] perfumadas, túnicas límpidas e ricos presentes. No campo, as ovelhas se revestiam sempre de espessa lã, os bois tinham pés flexíveis e os porcos, dentes brancos. E nada acontecia de bom nem de mau que não fosse pelo capricho e deliberação dos Deuses.
E agora, continuo relendo essas 24 adoráveis rapsódias[5] porque me sinto bem à luz da Aurora, a de róseos[6] dedos, nascida pela manhã; ou à noite, quando Hélios se vai deitar e os Deuses vingativos, nas trevas sinistras, ficam maquinando, sem piedade, as piores desgraças.
Foi a leitura integral dos Lusíadas, com os devidos comentários, que me impeliu para a Odisseia. Nunca pensei poder ler de princípio a fim esses Lusíadas que tanto tormento causam nas escolas. Essa leitura foi outra descoberta que fiz e hoje, analisando minhas reações, vejo ter sido um prazer acompanhar Vasco da Gama nas suas façanhas e aventuras.
Agora, num impulso de autocrítica, verifico que foi bem tarde a realização desses descobrimentos e sei que estou mesmo, em literatura, bancando o “Dom Fulgêncio, o homem que não teve infância”[7]. Pois essas leituras não deviam ser feitas logo após a adolescência? Digo após a adolescência porque o adolescente não tem espírito para compreender e sentir a grande simplicidade dos poemas clássicos, através de longos períodos e da repetição sistemática dos mesmos adjetivos nas mesmas circunstâncias.
Agora minha vontade é ler outras traduções da Odisseia, apesar de que Leconte de Lisle me agradou inteiramente, conservando em grego o nome de todos os personagens assim como o das regiões onde se passaram as cenas, dando ao poema um apurado sabor helênico[8].
Sirva minha aventura literária de exemplo e estímulo a todos que conservam nas suas estantes uma Odisseia abandonada.
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[1] entediante, importuno; [2] juntando como em um rebanho; [3] um dos dicionários mais importantes da língua francesa, comparável ao Aurélio ou Houaiss, no Brasil; [4] purificações por óleos; [5] os capítulos das histórias clássicas das obras épicas; [6] da cor rosa; [7] personagem de uma história em quadrinhos da Argentina, da década de 1930, que aparentava seriedade, mas que tinha atitudes infantis; [8] grego, referente à Hélade, nome pelo qual era conhecida a região da Grécia.
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A crônica tem esse caráter informal e tom de conversa, construída como se associasse uma memória sua com um fato cotidiano, e extraindo-se disso uma nova compreensão de si e da vida. Por isso, relembrando a odisseia da sua edição da Odisseia (do momento em que recebeu de presente até a tarefa heroica de vencer a primeira página), Tarsila apresenta esse contato progressivo que todo leitor acaba por vivenciar, diante dos livros clássicos. E se um amigo deu esse presente, a presenteada, sendo a artista transgressora de cores vivas e traços cheios (que faria Abaporu, Antropofagia e A cuca), seria de estranhar uma familiaridade com os campos gregos de deuses do Olimpo.
É o que ela própria confessa, mesmo dando uma reverência devida (ou forçada) à “tradição” e a esse “presente de grego” – associando-se ao Cavalo de Troia, invenção de Ulisses para vencer a guerra –, unindo-o aos volumes grossos do seu dicionário, como esse saber clássico, pesado, como elefantes.
Eis que ela decide, como o herói grego, enfrentar as dificuldades, e aí, vencendo os preconceitos que os livros clássicos carregam, entrega-se à leitura. E adora, e se encontra ali como em um refúgio. Da mesma forma, a crônica se contagia pelos adjetivos e espírito da epopéia de Homero, também ela cantando as glórias dos heróis.
Se desfaz a má impressão da Odisseia, também desfaz a dos Lusíadas, a obra correspondente em língua portuguesa do canto máximo de um povo e de um herói (no caso, Vasco da Gama).
Por fim, reconhece o poder e a força que esses livros têm, ao mesmo tempo em que reconhece as barreiras que acabam por se impor durante a adolescência e que impedem o aproveitamento de tais obras: é preciso ter “espírito para compreender e sentir a grande simplicidade”. Em outras palavras, o leitor precisa ter a curiosidade como combustível. Saber que “livros chatos” não existem, pela simples razão de que nenhum autor desejaria escrever algo para não ser lido, especialmente grandes autores como Homero ou Luís de Camões.
O que precisa haver é o incentivo (próprio ou de mediadores como professores, pais etc) e a vontade de enfrentar sereias, ciclopes, bruxas, ou então de ver a realidade por outras cores e expandir os limites da sua percepção, como Tarsila do Amaral também fez, criando o seu estilo modernista a partir de tudo que ia lendo, sentindo e compreendendo.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimoteo
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