A poesia de Fernando Pessoa é múltipla, pois são muitos universos que ele criou. Cada heterônimo tem todo um caminho a se trilhar e, na poesia feita pelo ortônimo (isto é, Fernando Pessoa ele-mesmo), o que existe em especial é a busca, a necessidade da compreensão simbólica do que se está fazendo ou pensando.
É isso que faz na “Autopsicografia”, em que “O poeta é um fingidor”, que procura traduzir em pensamentos o que ele sente, para que os leitores também busquem, nas palavras, fingirem-se fora dos seus próprios sentimentos.
Mas talvez o poema de autoconhecimento mais interessante de Pessoa seja “Eros e Psiquê”, com um sabor medieval e popular, mas que esconde essa travessia da descoberta de si mesmo.
Sem mais, vamos a ele:
EROS E PSIQUÊ
(Fernando Pessoa)
“… E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito[1], e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto[2] Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.”
– Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio[3] da Ordem Templária de Portugal
Conta a lenda que dormia
uma Princesa encantada
a quem só despertaria
um Infante[4], que viria
de além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
vencer o mal e o bem,
antes que, já libertado,
deixasse o caminho errado
por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
e orna-lhe[5] a fronte esquecida,
verde, uma grinalda de hera[6].
Longe o Infante, esforçado,
sem saber que intuito tem,
rompe o caminho fadado[7].
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino –
ela dormindo encantada,
ele buscando-a sem tino
pelo processo divino
que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
tudo pela estrada fora,
e falso, ele vem seguro,
e, vencendo estrada e muro,
chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
à cabeça, em maresia,
ergue a mão, e encontra hera,
e vê que ele mesmo era
a Princesa que dormia.
—
[1] Novato; [2] Pessoa iniciada; [3] Espaço de entrada do edifício, após a porta principal; [4] nobre, filho não primogênito do rei; [5] enfeita-lhe; [6] espécie de ramos de planta; [7] destinado.
***
Esse é um poema que, em uma leitura apressada, pode fazer o leitor desviar-se da ideia que se propõe. Por isso, vamos por partes.
Já no título se vê que será resgatada a história da mitologia grega de Eros e Psiquê. Em linhas gerais, conta que o deus Eros (o Amor, ou então Cupido) enamorou-se pela princesa Psiquê. Após um desentendimento – graças a intrigas de irmãs invejosas e complôs de Afrodite/Vênus, a sogra ressentida –, Psiquê perde seu amado e deve passar por uma série de desafios para que consiga reencontrá-lo. Eis que por fim, conseguem se unir, simbolizando o percurso que a alma (psiquê) enfrenta até que consiga encontrar o amor (eros).
No poema de Pessoa, tal ideia é ressignificada, a começar pela epígrafe extraída de um ritual templário. Interessante que essa ordem, similar à da Rosa Cruz ou mesmo à Maçonaria, tem a distribuição hierárquica em Graus, ou seja, são como níveis de conhecimento que cada um vai conquistando por mérito e esforço. O que a epígrafe mostra, no entanto, é que aquilo que foi explicado quando você entrou faz parte da mesma verdade que você descobriu mais tarde, em um nível mais avançado. Como na vida, é como se cada um fosse mergulhando nas suas informações e percebendo que aquilo que se julgava conhecer era somente a superfície, havendo muito mais a se saber.
É nesse contexto que o poeta apresenta a “lenda” da Princesa adormecida e do Infante, isto é, do nobre a ela destinado. Invertendo os papéis da história mítica, é o Infante que enfrentará os desafios, devendo “vencer o mal e o bem”, surgindo o símbolo que vai prosseguir até o final do poema, do caminho que se faz, ou seja, do Destino que se cumpre. Por isso que o Infante, após enfrentar os desafios, sai do “caminho errado” para entrar no que vai até a Princesa. Enquanto isso, a Princesa está esperando, não vivendo, mas sonhando, com o outro grande elemento simbólico do poema que é a grinalda de hera, como flores no cabelo, semelhante à história da Bela Adormecida.
A quarta estrofe, como o meio do poema, revela que os passos não são dados por eles, mas que há um destino já traçado, e que eles não sabem. Por isso que a Princesa ignora a existência do Infante, e ele nem a conhece.
Surge, então, a visão de que há um “processo divino que faz existir a estrada”. Há a mão de Deus, ou do Grande Arquiteto do Universo, que faz as coisas acontecerem no tempo certo, da forma que devem, mesmo que as pessoas não se deem conta disso. O que vale é que “cada um cumpre o Destino”. Por essa razão, mesmo com tudo sendo obscuro e desafiador, o Infante chega onde deveria chegar: o lugar onde a Princesa está.
Nesse momento, a estrofe final, surge a revelação ao Infante e ao leitor. Mesmo sem entender, quando ele ergue a mão à cabeça, encontra a hera, as plantas que estariam na cabeça da Princesa. Assim, fecha-se o ciclo e ele cumpre o seu destino, simbolizado pela sua fusão com a Princesa. Essa fusão desenvolve-se, então, como uma forma de busca pelo autoconhecimento. Assim, o Infante torna-se símbolo da busca por si mesmo, ainda que não de modo consciente. A Princesa seria, então, a própria consciência, à espera. Quando os dois se encontram, nessa obra do acaso orquestrado pelo Destino, é o processo de compreensão consciente que se revela.
No caso, associando-se ao mito de Eros e Psiquê, é como se cada um, sem saber, mesmo que se desvie, acaba por se encaminhar ao seu Destino. E, quando ele se cumpre, eis que era como se isso estivesse traçado desde o início, só não se tendo a maturidade para compreender.
Como diz o provérbio português, “o que há de ser tem muita força”, mesmo que se tente desviar, eventualmente volta-se ao caminho traçado, mesmo estando ignorado. E uma vez adquirida a consciência, a busca termina, ou melhor, termina para dar início a outras mais desafiadoras buscas.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimoteo
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Excelente interpretação!