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Perfeição

março 10, 2019

Em muitos aspectos, a banda Legião Urbana se mantém atual, pois aliou a “revolta” da juventude com um questionamento fundamentado e coerente. Composições como “Geração Coca-Cola” (1985), “Faroeste Caboclo” (1987) e “Que país é esse?” (1987) tornaram-se hinos que, mesmo passados mais de 30 anos, impõem-se por seus versos críticos e fortes.

Outra composição, presente em O Descobrimento do Brasil (1993), é “Perfeição”. Ela destoa das demais canções do álbum, pois predomina um tom pessimista tanto em relação ao Brasil, quanto ao próprio ser humano. Talvez muito mais realista do que pessimista, mas é uma canção que deve ser lida e ouvida, pois parece que os 26 anos de distância não existem…

Sem mais, vamos a ela:

PERFEIÇÃO

(Renato Russo/Dado Villa-Lobos/Marcelo Bonfá)

 

Vamos celebrar a estupidez humana

A estupidez de todas as nações

O meu país e sua corja de assassinos

Covardes, estupradores e ladrões

Vamos celebrar a estupidez do povo

Nossa polícia e televisão

Vamos celebrar nosso governo

E nosso estado, que não é nação

Celebrar a juventude sem escola

As crianças mortas

Celebrar nossa desunião

Vamos celebrar Eros e Tânatos [1]

Persephone e Hades [2]

Vamos celebrar nossa tristeza

Vamos celebrar nossa vaidade

Vamos comemorar como idiotas

A cada fevereiro e feriado

Todos os mortos nas estradas

Os mortos por falta de hospitais

Vamos celebrar nossa justiça

A ganância e difamação

Vamos celebrar os preconceitos

O voto dos analfabetos

Comemorar a água podre

E todos os impostos

Queimadas, mentiras e sequestros

Nosso castelo de cartas marcadas

O trabalho escravo

Nosso pequeno universo

Toda hipocrisia e toda afetação

Todo roubo e toda indiferença

Vamos celebrar epidemias:

É a festa da torcida campeã

Vamos celebrar a fome

Não ter a quem ouvir

Não se ter a quem amar

Vamos alimentar o que é maldade

Vamos machucar o coração

Vamos celebrar nossa bandeira

Nosso passado de absurdos gloriosos

Tudo o que é gratuito e feio

Tudo o que é normal

Vamos cantar juntos o hino nacional

(a lágrima é verdadeira)

Vamos celebrar nossa saudade

E comemorar a nossa solidão

Vamos festejar a inveja

A intolerância e a incompreensão

Vamos festejar a violência

E esquecer a nossa gente

Que trabalhou honestamente a vida inteira

E agora não tem mais direito a nada

Vamos celebrar a aberração

De toda a nossa falta de bom senso

Nosso descaso por educação

Vamos celebrar o horror

De tudo isso – com festa, velório e caixão

Está tudo morto e enterrado agora

Já que também não podemos celebrar

A estupidez de quem cantou esta canção

 

Venha, meu coração está com pressa

Quando a esperança está dispersa

Só a verdade me liberta

Chega de maldade e ilusão

Venha, o amor tem sempre a porta aberta

E vem chegando a primavera

Nosso futuro recomeça:

Venha, que o que vem é perfeição

 

—

[1] O primeiro é o deus grego do Amor, também chamado de Cupido. O segundo é o deus grego da Morte. O jogo entre os dois são as pulsões dos seres humanos, no conflito entre vida e morte; [2] Hades é o deus grego do mundo inferior, para onde vão os mortos. Ele apaixonou-se por Perséfone, deusa grega do mundo vegetal, que passa metade do ano com ele (momento em que a Terra perde a vida, durante o inverno) e a outra metade no Olimpo (momento em que a Terra renasce, durante a primavera). Simboliza, então, o ciclo de morte e renascimento.

***

 

A estrutura da canção não obedece métrica ou rima precisas, mas o ritmo que se apresenta, especialmente na primeira parte, dá um tom quase recitativo aos versos. Toda a letra se constrói em torno de verbos no imperativo (“Vamos celebrar”, na primeira estrofe, “Venha”, na segunda). Aliás, há um paradoxo por toda a canção, pois pede-se que se celebre uma lista de aspectos negativos que vão da esfera social à esfera individual. Tal celebração dá-se pelo “nós”, isso é, são elementos compartilhados pelo coletivo, que não pertencem exclusivamente ao poeta, nem ao leitor/ouvinte, como a “nossa tristeza”, “nossa vaidade”, “nossa desunião”.

A estupidez, primeiro elemento a ser celebrado, torna-se algo universal – e será encerrada a primeira parte celebrando-se a estupidez individual do próprio cantor. Essa oscilação também se realiza entre o lado concreto (“juventude sem escola”, “impostos, queimadas, mentiras e sequestros”) e o lado alegórico (“nosso castelo de cartas marcadas”, “alimentar o que é maldade”, “nosso passado de absurdos gloriosos”). O último exemplo, inclusive, reflete o jogo dos tempos, em que o que passou reveste-se de glória para alguns, mas se observado racionalmente pode ser considerado absurdo, brutal, e mesmo revoltante aos olhos do agora.

Celebra-se, ironicamente, também, a “inveja, a intolerância e a incompreensão”, “não ter a quem ouvir, não se ter a quem amar”, além de “festejar a violência” e a “aberração de toda a nossa falta de bom senso”. Enfim, aprofundar todos os itens é redundante, pois boa parte deles são autoexplicativos e basta um olhar pelas notícias, pelas ruas ou pelas redes sociais para ver como essa onda (que não é nova) ameaça arrastar a tudo e a todos para dentro de suas próprias cápsulas e bolhas.

Eis que, na segunda estrofe, cujo ritmo muda e adquire um toque mais leve, parece reverter a situação e indicar uma esperança. Os termos também mudam, e a “verdade” que liberta, o “amor” que abre a porta e a “primavera” que chega vêm para substituir a “maldade e a ilusão”. O que fica é a impressão de que tudo isso pode ser possível, se houver por parte do leitor/ouvinte o aceite ao convite do “venha”, e ele ir à perfeição…

 

O que se deve fazer, afinal, é ouvir a música, ter consciência das mazelas todas citadas e que existem pelo conjunto de milhões de ações de todas as esferas sociais, acumuladas em todas as épocas passadas e agir. Deter-se em críticas abstratas ao governo ou a “inimigos ocultos” nada acrescentam ao debate ou à mudança. É preciso que cada pessoa, em seu “pequeno universo” também deve agir, mostrando que é parte harmônica no combate a injustiças com o outro, que é todo aquele que não sou eu, mas que merece o mesmo respeito que julgo merecer.

 

E pronto!

por Saulo Gomes Thimóteo

cançãocrítica socialLegião UrbanamúsicaRenato Russoséculo XX
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Literatura brasileira

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