Muitas são as datas simbólicas que servem de tema para produções literárias, mas o Natal torna-se a principal delas. Sim, houve a “adequação” para que nascesse no dia do solstício de inverno (no hemisfério Norte), de modo a unir as celebrações pagãs do nascimento do Sol ao rito cristão. Sim, as imagens do nascimento pobre na estrebaria, escapando da morte encomendada pelo rei Herodes, têm grande componente mítico, para mais enaltecer a figura de Jesus, diante dos sofrimentos e desafios futuros a serem enfrentados. E sim, a data se tornou muito mais comercial do que espiritual. Mas o Natal ainda possui, em essência, na figura do menino Jesus, essa esperança de renovação com um nascimento.
Miguel Torga, escritor português, manteve um diário de apontamentos e poemas que lhe ocorriam durante mais de sessenta anos (1932-1993) e em diversas vezes, pela altura do Natal, inspirava-se pela data e escrevia algumas considerações poéticas. Aqui vão duas: diferentes na estrutura, 45 anos distantes no tempo, mas em ambas se dirigindo ao Menino Deus, pedindo-lhe que venha e pedindo-lhe que nasça.
Sem mais, vamos a eles:
NATAL
(Miguel Torga)
Coimbra, 24 de dezembro de 1942
Velho Menino-Deus que me vens ver
Quando o ano passou e as dores passaram:
Sim, pedi-te o brinquedo e queria-o ter,
Mas quando as minhas dores o desejaram…
Agora, outras quimeras[1] me tentaram
Em reinos onde tu não tens poder…
Outras mãos mentirosas me acenaram
A chamar, a mostrar e a prometer.
Vem, apesar de tudo, se queres vir.
Vem com neve nos ombros, a sorrir
A quem nunca doiraste[2] a solidão…
Mas o brinquedo… quebra-o no caminho.
O que eu chorei por ele! Era de arminho[3]
E batia-lhe dentro um coração…
—
Coimbra, 24 de dezembro de 1987.
Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.
Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar,
Devasse[4] os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar.
—
[1] sonho impossível, esperança irrealizável; [2] o mesmo que douraste, isto é, tornar mais suportável; [3] macio, fofo, puro; [4] perca, devaste.
***
Esses dois poemas, como diversos outros de Miguel Torga, trazem, ao mesmo tempo, uma angústia de algo que se perdeu e uma esperança em algo que não se sabe. O primeiro deles, em forma de soneto (isto é, 14 versos, dois quartetos e dois tercetos, dez sílabas poéticas e rimas alternadas), constrói-se em oito frases, na maioria divididas no espaço de dois versos. Nele, evoca-se o “Velho Menino-Deus”, como símbolo duplo: é ele que vai agir sobre a vida e os sonhos do poeta, mas conforme a vontade do próprio poeta, não de Jesus.
Na primeira estrofe, a figura do “brinquedo” é o presente, algo benéfico e alegre, que vem para acalmar as dores, algo prejudicial e triste. Mas aqui se coloca no tempo passado, como se o que antes foi desejo, agora não é mais. Por isso, na segunda estrofe, surgem as “quimeras” e as “mãos mentirosas”, que desviaram o poeta dessa ligação com o Menino-Deus – que se coroaria no Natal.
Nesse sentido, a terceira estrofe funciona como a tentativa de retomada da normalidade ou, pelo menos, de sua aparência (“Vem, apesar de tudo, se queres vir”). O nascimento de Jesus é, então, a vinda e o sorriso, porém a solidão do poeta, as dores e promessas outras pelas quais passou, tudo isso ainda lá estará. É como se houvessem dois níveis: o nível da superfície, no qual o nascimento de Cristo ainda se mostra como possibilidade dessa purificação e alegria; o nível do interior do poeta, em que há uma angústia que os raios da superfície não atingem.
Assim, o poema se encerra, resgatando a imagem do brinquedo e dizendo que o quebre, pois não terá mais serventia. Se antes chorou por ele e pela vida que lá dentro havia, no agora nem mesmo a vinda de Jesus acalmaria isso.
O segundo poema, por sua vez, pede ao mesmo Menino Deus que nasça, mais uma vez. Em ambos os poemas, a figura do inverno aparece (pois em Portugal o Natal acontece no início do inverno), com toda a carga simbólica do frio, da escuridão, da melancolia. Mas Jesus surge como aquele que trará a vida, a alegria e o calor e, mesmo que não esteja num “presépio mais agasalhado”, o apelo é para que não falte ao nascimento, pois o poeta demonstra essa necessidade.
Na segunda estrofe, contudo, se inicialmente ele quer isso como forma de sentir-se mais completo, logo ele aponta uma forma de traição (e de autotraição). Como se o peso de tal pureza e alegria não se pudesse suportar, o próprio poeta revela que “denunciaria” Jesus (recorrendo à história de Herodes e da condenação dos bebês e crianças à morte) e destruiria a paz que sente com o “sonho” do Cristo nascido.
Comparando os poemas, é como se o sonho em torno do menino Jesus se envolvesse de luz e esperança, mas, diante das quimeras do mundo e do próprio poeta em sua humanidade, há um distanciamento disso, de modo quase involuntário.
Que essas angústias todas fiquem restritas aos poemas, e que os leitores possam sentir-se renovados, com os seus “brinquedos”, com muita vida interior, poucas mãos mentirosas acenando (e não as atendendo) e nenhum Herodes interno de autossabotagem…
Feliz Natal!
Tudo de bom e coisarada!
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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