O realismo fantástico do século XX, que, na América Latina, encontra escritores gigantes como Gabriel García Márquez (Colômbia) e Jorge Luís Borges (Argentina). No Brasil, também há representantes de alta qualidade: Murilo Rubião, por exemplo, tem contos em que a presença do insólito se mescla ao cotidiano, na forma de dragões que procuram emprego e uma mulher que engorda à medida em que deseja bens materiais e Ignácio de Loyola Brandão vê um homem com um furo na mão e outro, literalmente, descendo pelo cano.
Da mesma maneira, o escritor José J. Veiga, mesmo não aceitando o rótulo de “literatura fantástica” aos seus textos, apresenta a interação de elementos estranhos à lógica racional, mesmo que tratados com uma linguagem que se estrutura numa naturalidade. No caso de “A máquina extraviada”, imitando um estilo de carta, conta-se a história de uma cidade do interior que, sem qualquer explicação, é surpreendida pela montagem de uma grande máquina gigantesca, complicada e, principalmente, estranha.
Sem mais, vamos a ele:
A MÁQUINA EXTRAVIADA
(José J. Veiga)
Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou – não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas – quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.
A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.
Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.
A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. E claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.
As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima – até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.
Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar.
Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.
Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.
Devemos reconhecer – aliás todos reconhecem – que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica kaol[1] nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo – e a máquina fica faiscando como joia.
Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar.
Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.
Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja.
A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.
Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas[2] para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.
Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal – por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer sabe a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo?
Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso – aqui para nós – eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu – e creio que também a grande maioria dos munícipes – não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando.
O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos), peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.
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[1] marca de produto utilizado para polir metais; [2] ferramenta usada para furar o chão.
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Os textos de José J. Veiga sempre esperam indagar, sem qualquer interesse pela resposta. No caso desse conto, embora não havendo qualquer explicação sobre a razão de ser da máquina, percebe-se que isso é um mero detalhe para o narrador. É preciso entrar no jogo de linguagem e sentidos, utilizando-se da máquina como símbolo de diversas coisas, algumas delas sendo observadas na sequência.
A máquina como bem público: diante da imponência (mesmo que o narrador não dê muitos detalhes, cabe ao leitor construi-la na imaginação), toda a cidade parece buscar respostas e, não as tendo, contentam-se com integrá-la à rotina. É o que as velhas fazem, os valentões, as crianças, enfim, todo cidadão da cidade cria um relacionamento com a máquina. O narrador afirma que “Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância”, fazendo com que o orgulho de algo – mesmo sem compreender sua serventia – seja algo muito mais simbólico do que prático.
A máquina como bem político: Mesmo sem saber quem a encomendou, para que serve ou como mantê-la, o prefeito (e demais políticos da cidade) usa-a como referência. Igualmente na ignorância, cidades vizinhas querem comprar a máquina, para também somente exibi-la, sem compreender seu funcionamento. Surge aí a figura de aproveitar-se da “fama” da máquina em benefício próprio.
A máquina como bem espiritual: O único que não se encanta pela máquina é o vigário. O narrador salienta que ele é “ranzinza” e “azedo”, mas há a ironia de que, talvez, o que o vigário observa (e teme) é a devoção que as pessoas passam a nutrir pela máquina. Dessa devoção passa-se a uma fé na máquina como ser superior, capaz até de realizar milagres.
Por fim, o que se extrai dessa máquina é a certeza de que o valor e a serventia das coisas não está, necessariamente, na função que elas exercem, mas na carga simbólica e abstrata que a elas é atribuída. Por isso que o maior medo do narrador é se vier o “moço de fora”, que vai explicar o funcionamento da máquina, acabando, justamente, com o encanto da população.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
2 Comments
As pessoas comesaram a idolatra a maquina por causa que ela ja estava la a muito tempo o vigario estar sendo racional a maquina n tem por que niguem sabe para que serve
Ótima análise, Saulo. Parabéns!