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LIÇÕES

janeiro 18, 2018

Um dos mais importantes nomes da literatura africana de expressão portuguesa atualmente é o escritor moçambicano Mia Couto. Isso se deve por uma gama de fatores que se constroem numa linguagem literária cheia de vida e sabores: há o resgate do elemento telúrico, isto é, da terra, das raízes, das tradições moçambicanas, e africanas de um modo geral; há uma inventividade de histórias que se aproximam do contar de narrativas à beira da fogueira ou numa sala (como qualquer de seus contos pode atestar); e há o jogo com as palavras, em conexão de herança e encanto com a prosa do brasileiro Guimarães Rosa.

Antes dos contos e romances, que já o consagraram com o Prêmio Camões (em 2013) e o Neustadt, o “Nobel Americano” (em 2014), Mia Couto produziu poemas (e ainda os escreve) em que a mesma temática e a mesma visualidade se podem observar, como formas de traduzir tanto a paisagem externa quanto os labirintos internos do indivíduo. É o que ocorre no poema “Lições”, do livro Idades Cidades Divindades, em que a figura da criança se associa à compreensão da natureza e dos homens, e como entidade capaz de ensinar aos outros o que eles esqueceram.

Sem mais, vamos a ele:

 

LIÇÕES

(Mia Couto)

Não aprendi a colher a flor

sem esfacelar[1] as pétalas.

Falta-me o dedo menino

de quem costura desfiladeiros[2].

 

Criança, eu sabia

suspender o tempo,

soterrar abismos

e nomear as estrelas.

Cresci,

perdi pontes,

esqueci sortilégios[3].

 

Careço da habilidade da onda,

hei-de aprender a carícia da brisa.

 

Trémula, a haste

me pede

o adiar da noite.

 

Em véspera da dádiva[4],

a faca me recorda, no gume[5] do beijo,

a aresta[6] do adeus.

 

Não, não aprenderei

nunca a decepar flores.

 

Quem sabe, um dia,

eu, em mim, colha um jardim?

 

—

[1] desfazer, estragar; [2] passagem entre as montanhas; [3] habilidades, desenvolturas; [4] presente; [5] o fio da lâmina de objetos cortantes; [6] saliência, ponto.

 

***

Na obra mia-coutiana (e na literatura toda, afinal de contas), toda figura que aparece é símbolo que se constrói em função da narrativa, mas, ao mesmo tempo, é evocação de algo a ser construído pelo leitor – como um segundo discurso que se insinua, mas sem se revelar abertamente

No caso dessas “lições”, logo na primeira estrofe se estabelecem os elementos de ensino e de aprendizagem: o eu-lírico se assume como incapaz de “colher a flor” sem fazê-la perder a sua delicadeza e sua integridade. Consciente disso, ele já antevê que precisaria de um “dedo menino”, ou seja, de um gesto e toque infantil para chegar às coisas. Além disso, a imagem dos desfiladeiros (como total contraponto à fragilidade da flor) é “costurada”, remetendo à ação infantil de acompanhar o contorno das montanhas distantes com o dedo.

Uma vez estabelecido esse “aluno relapso”, resta apresentar o “mestre”. E, assim como o Menino Jesus de Alberto Caeiro (poema oitavo de O guardador de rebanhos), é a criança que ensina tudo, por conseguir ver as coisas para além das coisas, muito mais sentindo na simplicidade do que pensando na complexidade. Eis que o eu-lírico, rememorando-se como criança, resgata suas desenvolturas de “suspender o tempo”, “soterrar abismos” e “nomear estrelas”. Note-se que são três elementos teoricamente infinitos, mas sofrendo ações de restrição ou rotulação. Com isso, a criança surge como ser capaz de conter o infinito, não para o oprimir, mas como forma de jogo e brincadeira. Em um paralelismo (“Criança… Cresci”), o poeta volta-se ao seu estado adulto, apenas para reconhecer que perdeu e esqueceu essas ligações com o lado mágico da visão das coisas.

Mas esse adulto revela-se como consciente de que precisa (“careço”) resgatar tais habilidades. Para isso, recorre à onda e à brisa, como entidades capazes de novamente despertarem a criança interna.

Nas quarta e quinta estrofes, a flor presente no início volta ao foco. Ela pede (no caso, a haste da flor) que não a mate, que a sua “noite” seja adiada. E o poeta suspende o gesto, antes que a sua faca “beije” a flor de morte. Como possível interpretação da quinta estrofe, seria o poeta que, ao pensar em cortar uma flor para presentear alguém, percebe que isso seria uma forma de morte daquele frágil ser vivo.

Após todo o processo mental (que se materializa no poema escrito e se prolonga nos pensamentos sentidos), o poeta nega a si o papel de “decepador”  de flores. Tal ação é muito mais violenta e cruel do que o “colher” da primeira estrofe, razão pela qual a sexta estrofe é tão categórica, para que o poeta não se deixe contaminar pela insensibilidade objetiva.

Por isso, o poema se finda com o desejo de autorrealização, colhendo dentro de si mesmo, as flores que desejar, associadas à pureza infantil de uma criança que, metaforicamente, poderia tê-las plantado.

 

É necessário despertar a criança adormecida, de modo a ver e sentir as coisas como são. Algo que também se apresenta em todos os personagens infantis de Mia Couto, presentes em contos como “O general infanciado” (que precisa ser lido!), “O menino que escrevia versos” ou “A menina sem palavra”. Da mesma forma, é preciso ver na flor, na montanha e nas estrelas, caminhos para cultivar o jardim interno e despertar a descoberta do mundo.

Essa é a lição primordial (e a mais facilmente esquecida).

 

E pronto!

 

por Saulo Gomes Thimóteo

 

 

 

infânciamemóriaMia Coutonaturezapoemaséculo XX
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Literaturas africanas

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Comment


A guerra dos palhaços - Um professor lê
October 9, 2018 at 2:16 pm
Reply

[…] e atemporal. Da poesia, já se fez no site uma análise do poema “Lições” (disponível aqui), agora apresenta-se um conto intitulado “A guerra dos palhaços”, presente no livro Estórias […]



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