Olavo Bilac é um autor de grandes lances poéticos e de belas imagens criadas pelas palavras. O seu cuidado extremo na elaboração do poema, mesmo rendendo críticas dos modernistas, é algo que merece atenção por parte dos leitores, especialmente para ouvir e imaginar as cenas pintadas pelo “Príncipe dos poetas”.
Deixando de lado a sua construção metalinguística, que os livros didáticos insistem em reduzir a poemas como “Profissão de fé” e “A um poeta” (como se ele somente tivesse escrito esses dois poemas – algo semelhante a Camões com seu “Amor é fogo que arde sem se ver…”), há muitos outros em que a figura do poeta se apresenta como aquele que salva, e sente, e singra, e sofre e sua. Como exemplo, “A avenida das Lágrimas” vai criar uma bela metáfora do poeta como aquele que trilhou o caminho que outros seguirão, lançando suas lágrimas como sementes que gerarão novas flores.
Sem mais, vamos a ele:
A AVENIDA DAS LÁGRIMAS
(Olavo Bilac)
A um Poeta morto
Quando a primeira vez a harmonia secreta
De uma lira[1] acordou, gemendo, a terra inteira,
– Dentro do coração do primeiro poeta
Desabrochou a flor da lágrima primeira.
E o poeta sentiu os olhos rasos de água;
Subiu-lhe à boca, ansioso, o primeiro queixume[2]:
Tinha nascido a flor da Paixão e da Mágoa,
Que possui, como a rosa, espinhos e perfume.
E na terra, por onde o sonhador passava,
Ia a roxa corola[3] espalhando as sementes:
De modo que, a brilhar, pelo solo ficava
Uma vegetação de lágrimas ardentes.
Foi assim que se fez a Via Dolorosa,
A avenida ensombrada[4] e triste da Saudade,
Onde se arrasta, à noite, a procissão chorosa
Dos órfãos do carinho e da felicidade.
Recalcando[5] no peito os gritos e os soluços,
Tu conheceste bem essa longa avenida,
– Tu que, chorando em vão, te esfalfaste[6], de bruços,
Para, infeliz, galgar o Calvário[7] da Vida.
Teu pé também deixou um sinal neste solo;
Também por este solo arrastaste o teu manto…
E, ó Musa, a harpa infeliz que sustinhas ao colo,
Passou para outras mãos, molhou-se de outro pranto.
Mas tua alma ficou, livre da desventura,
Docemente sonhando, às delícias da lua:
Entre as flores, agora, uma outra flor fulgura[8],
Guardando na corola uma lembrança tua…
O aroma dessa flor, que o teu martírio encerra,
Se imortalizará, pelas almas disperso:
– Porque purificou a torpeza[9] da terra
Quem deixou sobre a terra uma lágrima e um verso.
—
[1] instrumento de cordas associado à Poesia, de onde advém o gênero “lírico”; [2] lamento, tristeza; [3] coroa das flores de onde se dissipam as sementes; [4] com sombras; [5] reprimindo, sufocando; [6] esgotou as forças; [7] Colina onde Jesus foi crucificado, metáfora para martírio extremo; [8] brilha intensamente; [9] infâmia, más ações
***
Pensando que os poemas de Olavo Bilac eram uma constante nos saraus literários do começo do século XX (numa época pré-Facebook, pré-televisão e mesmo pré-rádio), pode-se observar a beleza que a sua declamação poderia causar nos ouvintes.
Esse poema mostrará, em suas oito estrofes de versos alexandrinos (doze sílabas poéticas) e rimas alternadas (ABAB), o nascimento, a morte e a continuação da essência de um poeta – pensando-se que é dedicado “a um Poeta morto”. Tudo isso sendo apresentado em imagens carregadas de metáforas.
Logo na primeira estrofe, mostra-se a causa do despertar do poeta: a primeira vez que uma lira tocou a “harmonia secreta”, atingiu não somente a terra inteira, mas principalmente o coração do “primeiro poeta”, no qual desabrochou a “flor da lágrima primeira”. Chama a atenção a insistência da estreia (primeira vez, primeiro poeta, primeira lágrima), além da bela imagem de uma “flor da lágrima”.
Isso se resgata na segunda estrofe, pois esse florescer interno se extravasa nos olhos do poeta e na boca, na qual principiam a brotar os versos. Tal flor é nomeada: flor da Paixão e da Mágoa, como sentimentos por excelência desse poeta que nasce. Na comparação concreta, traz-se a rosa, que possui tanto o perfume (como despertador de Paixão), quanto os espinhos (causadores de Mágoas).
E esse personagem sonhador que é criado, na terceira estrofe realiza a ação de caminhar. Aprofundando a metáfora da flor, o poeta espalha as suas sementes, no caso, as suas “lágrimas ardentes”, que vão brilhando por todo o percurso que fez.
Como forma de explicação do título (Avenida das Lágrimas), a quarta estrofe faz uma alusão à imagem de Cristo, na Via Dolorosa. No caminho simbólico que o poeta fez, com a Saudade aparecendo como elemento motivador, Olavo Bilac apresenta todos aqueles que são “órfãos do carinho e da felicidade” e que se arrastam, chorando. Com isso, aquele primeiro poeta construiu a sua procissão, que vão seguindo nesse caminho de tristezas e angústias.
Na quinta estrofe, surge o interlocutor do eu-lírico (o poeta morto). Evocando esse “Tu”, Bilac mostra que ele conheceu a Avenida das Lágrimas, chorou, sofreu e, em nova referência a Cristo, associa os martírios de Jesus às amarguras da Vida enfrentada pelo poeta. (Por certo que é um exagero, ou, como figura de linguagem, uma hipérbole, mas é para enaltecer o Poeta como um ser quase divino, de muito sofrimento com vistas a uma redenção final).
As duas estrofes seguintes acabam por se contrapor. Na sexta, mostra-se a marca deixada pelo poeta morto (“Teu pé”, “teu manto”). E como a Musa, depois de ter dado a harpa a esse poeta, deu-a a outras mãos, ou seja, quando aquele poeta morreu, outro poeta surgiu para lhe suceder. Na sétima, eleva-se a “tua alma”, que, com a morte, parou de sofrer, chegando “às delícias da lua”. E se apresenta a flor daquele poeta morto, que agora faz parte da Avenida das Lágrimas também.
Por fim, o poema encerra-se evidenciando o valor do poeta que, mesmo morto, mantém-se vivo através do “aroma” de suas flores poéticas, ou seja, seus poemas. E, atingindo não apenas aquele poeta, mas num tom universal, Bilac mostra o poder da Poesia, associando o verso com a lágrima, e ambos “purificando” o lado vil da terra.
Todo o caminho realizado nesse texto, como exemplo simbólico do percurso de cada poeta, mostra como é muito redutor dizer que Olavo Bilac e o Parnasianismo apenas produzem poemas objetivos, impessoais e descritivos. Cada poema possui uma unidade que não pode ser encaixada num padrão, por isso a literatura escapa a regras, convenções e Escolas.
Ao se ler esse poema, não se pode dizer que tal tema se tornou ultrapassado, pois, em época de sofrência e dor de cotovelo, que se nota em diversos cantores sertanejos, são vários os “órfãos do carinho e da felicidade” que andam por essa Avenida das Lágrimas…
E pronto.
por Saulo Gomes Thimóteo
2 Comments
Sempre visualizei o parnasianismo como uma oposição ao romantismo devido a impessoalidade.
Lendo o poema, situei-o exatamente no… ultraromantismo! kkk
Mas como você disse, justamente a característica da literatura de fugir as normas e as convenções é o que a torna cativante e também atemporal (adoro essa palavra ‘-‘), como quando citaste a “sofrência”, rs.
OBS: senti falta do botão “curtir” no site kk
Obrigada por publicar suas análises ao público, principalmente, nos poemas parnasianos que são necessários a compressão das referências e das analogias do texto para uma boa interpretação. Graças aos profissionais como você, os quais disponibilizam conteúdo de qualidade gratuitamente, a internet se torna uma ferramenta de aprendizado.