Nos finais do século XIX, a poesia brasileira passava por um misto de oscilações, tendo o Parnasianismo como escola mais em voga, com suas formas poéticas altamente pensadas e construídas. Por certo que há, com relação ao Parnasianismo, certo preconceito (ecoado dos modernistas e além), justamente por uma objetividade, às vezes, excessiva e mesmo certo alheamento. Mas não se pode ignorar e esquecer os jogos de palavras e de descrições que, em leituras mais cuidadas ou menos apressadas, é possível saborear.
Francisca Júlia é uma poeta que formula seus textos tendo em mente tanto a forma clássica e apurada parnasiana, quanto já alguns acenos ao Simbolismo. Em “Musa impassível”, um de seus mais famosos sonetos, pode-se sintetizar bem a evocação a essa entidade clássica inspiradora dos poetas, além de resgatar imagens e histórias clássicas e jogar com palavras raras, tudo para criar um poema impecável na forma e na impassividade pretendida. (Lembrando que há o uso do hipérbato, figura de linguagem que muda a ordem da frase para efeitos poéticos. Por isso, pede-se que leiam as frases e busquem os sentidos, mesmo que à primeira vista não estejam tão claros).
Sem mais, vamos a ele:
MUSA IMPASSÍVEL[1]
(Francisca Júlia)
Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie[2] o cândido[3] semblante[4]!
Diante de Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho[5] austero[6].
Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico[7] descante[8].
Celebra ora um fantasma anguiforme[9] de Dante,
Ora o vulto marcial[10] de um guerreiro de Homero.
Dá-me o hemistíquio[11] d’ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra[12],
Cante aos ouvidos d’ alma; a estrofe limpa e viva;
Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor[13] de um calhau[14] que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.
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[1] insensível à dor ou ao sofrimento; [2] torne feio; [3] puro, claro; [4] rosto; [5] expressão; [6] sério, rigoroso; [7] sonhador; [8] cantar; [9] com forma de cobra; [10] combativo, relativo à guerra; [11] verso; [12] repetida, frequente; [13] barulho, som; [14] pedra dura
***
Talvez um dos principais motivos de “afastar” os leitores dessa modalidade de poemas seja, justamente, palavras como “descante”, “anguiforme”, “hemistíquio” ou “crebra”, que dificilmente seriam utilizadas numa conversa… Mas, uma vez compreendido o sentido delas, tornam-se interessantes de ouvi-las na cadência da frase.
A ideia central do soneto, como se mostra desde o título, é evocar a Musa inspiradora, que, no caso, mantém-se alheia a tudo (fazendo a egípcia, se assim preferirem), para que a poeta consiga criar um belo poema, com versos, rimas e harmonia perfeitas.
Nas duas primeiras estrofes há a caracterização dessa entidade. Após chamá-la (“Musa!”), há nos dois primeiros versos esse desejo da impassibilidade: espera-se que nunca o rosto puro da Musa seja modificado por ela ter visto alguém com dor ou com tristezas. Como se exemplificasse, a poeta mostra duas imagens: a Musa deve manter-se insensível e sem qualquer expressão, mesmo diante de Jó (personagem bíblico que sofreu todas as amarguras humanamente possíveis) ou diante de uma pessoa morta.
Na segunda estrofe, primeiro se destacam duas ordens da poeta: não quer lágrimas nos olhos da Musa, nem que ela cante canções suaves; depois, mostra que a função da Musa é ser capaz de inspirar grandiosas obras e figuras, como um fantasma ou um guerreiro. Para isso, Francisca Júlia recorre a dois dos maiores poetas da Humanidade: Dante, que, na Divina Comédia, percorre e descreve o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, criando todos os seres desse outro mundo, especialmente os monstros das profundezas; e Homero, que, na Ilíada, canta os feitos guerreiros de Aquiles e do exército grego, durante a guerra com Troia. Assim, a Musa que inspirou Homero e Dante, para cumprir bem o seu papel, deve manter-se alheia e desprezando o mundo e os sofrimentos.
Após essa evocação, as duas outras estrofes voltam-se para o pedido que a poeta faz: ela deseja que a Musa lhe inspire imagens, rimas, estrofes e versos. As imagens devem ser atrativas. As rimas devem ter um som harmônico que “cante aos ouvidos d’alma”. E os versos devem ser “d’ouro”, assemelhando-se tanto ao choque de uma pedra bruta quanto ao bater do mármore, ou seja, tanto a força rústica de expressão guerreira, quanto à beleza de uma escultura clássica.
Interessante notar, também, como o poema se constrói todo em paralelismos. Na primeira estrofe a Musa se coloca diante de Jó e diante de um morto. Na segunda, abre-se com “em teus olhos não quero” e “não quero em tua boca”, e fecha-se contrapondo Dante e Homero. E na quarta, os versos lembrarão “ora o áspero rumor” do calhau quebrado, “ora o surdo rumor” do mármore partido. Além de, obviamente, o cuidado que Francisca Júlia teve para, a partir dos grandes poetas clássicos, encontrar rimas que se adequassem ao que ela pretendia: Homero – sincero, austero, quero; Dante – semblante, diante, descante.
Com tudo isso, revela-se que, mesmo que o tema não seja combativo, esses exercícios de metalinguagem, dos poemas falando sobre como se deseja escrever poemas, formam uma bela demonstração da língua portuguesa em toda sua força expressiva e beleza na construção lírica.
Afinal, para se criar um poema em que se achem rimas para Homero e Dante, fazendo tudo em doze sílabas poéticas e tendo sentido não é algo fácil. Nem tampouco rimar “quebra” com “crebra”… Por isso, é necessário respeito aos parnasianos. Mostram-se poemas brutos, mas que se tornam muito mais claros numa segunda leitura. (Se possível, façam o teste).
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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