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Súplica

novembro 24, 2017

A cultura africana é um universo tão vasto que se esquiva de fronteiras artificiais. Por isso, os escritores dos países africanos de expressão portuguesa (Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Timor-Leste) recriam a língua portuguesa – língua do colonizador –, fazendo um veículo de combate e de afirmação de sua identidade. E essa identidade se relaciona muito mais com as raízes do seu lugar e as tradições dos ancestrais do que com uma delimitação geográfica que diga “Moçambique”, por exemplo.

Nesse sentido, poetas como Noémia de Sousa revelam a força da palavra poética, que carrega consigo uma sonoridade e beleza, mas também o tom de luta e de autovalorização de si e dos seus. Cada poema de Noémia carrega um grito e um canto, a ser ouvido e internalizado, algo plenamente percebido em “Súplica”, em que o modo imperativo dos versos guarda consigo uma essência que não se pode abdicar.

Sem mais, vamos a ele:

 

SÚPLICA

(Noémia de Sousa)

 

Tirem-nos tudo,

mas deixem-nos a música!

Tirem-nos a terra em que nascemos,

onde crescemos

e onde descobrimos pela primeira vez

que o mundo é assim:

um tabuleiro de xadrez…

Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,

a lua lírica do xingombela[1]

nas noites mulatas

da selva moçambicana

(essa lua que nos semeou no coração

a poesia que encontramos na vida)

tirem-nos a palhota[2] – a humilde cubata[3]

onde vivemos e amamos,

tirem-nos a machamba[4] que nos dá o pão,

tirem-nos o calor do lume

(que nos é quase tudo)

– mas não nos tirem a música!

Podem desterrar-nos,

levar-nos

para longe terras,

vender-nos como mercadoria, acorrentar-nos

à terra, do sol à lua e da lua ao sol,

mas seremos sempre livres

se nos deixarem a música!

Que onde estiver nossa canção

mesmo escravos, senhores seremos;

e mesmo mortos, viveremos,

e no nosso lamento escravo

estará a terra onde nascemos,

a luz do nosso sol,

a lua dos xingombelas,

o calor do lume

a palhota que vivemos,

a machamba que nos dá o pão!

E tudo será novamente nosso,

ainda que cadeias nos pés

e azorrague[5] no dorso…

E o nosso queixume

será uma libertação

derramada em nosso canto!

– Por isso pedimos,

de joelhos pedimos:

Tirem-nos tudo…

mas não nos tirem a vida,

não nos levem a música!

 

—

[1] dança, praticada à noite, por jovens de idades aproximadas; [2] abrigo rústico, geralmente feito de palha; [3] sinônimo de palhota; [4] terreno agrícola de cultivo familiar; [5] açoite, chicote.

 

***

 

Como se pode notar, em primeiro lugar, há duas esferas de coletividade: o “nós”, que se veem subtraídos de praticamente todos os elementos de autoidentificação; e o “vocês”, que vão praticando as ações de tolher e cortar. A síntese dos dois primeiros versos funciona como tese a ser defendida: “Tirem-nos tudo, / mas deixem-nos a música!”

O “tudo” se especifica na sequência: é a “terra em que nascemos”; é a “luz do sol”, é a “lua lírica” que ilumina as noites e as danças e a poesia descoberta; é a casa familiar, com o sustento, o calor e a vida. E há a súplica de que tudo isso se pode tirar, menos a sua música.

Mas, pensando que o mundo é “um tabuleiro de xadrez”, ou seja, com uma divisão bem delimitada entre os espaços brancos e negros, os colonizadores surgem como aqueles que não apenas lhes tiram todos os seus elementos naturais, mas tiram os próprios habitantes de sua terra, vendendo-os “como mercadoria”, acorrentados e desterrados.

Eis que surge a esperança interna dessa voz poética, pois “seremos sempre livres / se nos deixarem a música”. Há grande expressividade e força na afirmação de que “onde estiver nossa canção / mesmo escravos, senhores seremos”. Nesse paradoxo, do escravo tornar-se senhor, reside a essência desse povo africano forçado ao desterro: se na exterioridade pode ser escravo, morrer e sofrer com cadeias e açoites; em sua interioridade haverá um sol que não se apaga, a terra ressurgida da lembrança. E tudo se reconstrói através da música, com as queixas tornadas autolibertação.

Esse é o poder da música, da arte, intimamente associada à vida. Por isso, nesse resgate que Noémia de Sousa faz do sofrimento dos povos africanos, subsiste uma fagulha de esperança (embora continuamente ameaçada) na música que é o canto de resgate dos antepassados e da sua terra.

Levando-se em conta que a humanidade se originou da África e migrou para toda a Terra, essa música é algo a ser compartilhado por todas as pessoas do mundo. E a consciência africana da ancestralidade mostra-se como uma ação a ser constantemente lembrada, não como obrigação ou ato de calendário, mas como força interna, que pulsa em todos a cada noite, diante da “lua lírica do xingombela”, como movimento de união entre iguais.

 

E pronto!

por Saulo Gomes Thimóteo

ÁfricaNoémia de Sousapoemaséculo XX
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Literaturas africanas

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Comment


maia
April 21, 2021 at 2:12 am
Reply

Que coisa mais linda, q enche a alma. Eu fico refletindo sobre o poder da música e penso q quando está associada a sentidos mais profundos e dignos, ela, sem dúvida, torna-se mágica. Por isso fico muito incomodada com algumas músicas ouvidas pelos jovens da periferia. Sei, como experiência própria, do valor imenso do samba, do funk e do rap. Mas destoa dessa riqueza e dessa liberdade q a música proporciona as letras de funk proibidão, por exemplo, q enaltecem o crime, o sexo vazio, a violência e a ostentação material. Já fui confrontada nesse sentido, onde me disseram q eu estava sendo moralista e contra a liberdade, q o samba passou por isso e q proibir seria privar o povo de sua cultura. Ora, como é possível querer comparar as obras primas musicadas do samba com funk proibidão? Tenho pra mim, que um povo que recebe a cada geração uma herança de abusos sociais, de negligências, de privação dos direitos mais básicos, merece a grandeza q a música pode trazer, já que essa grandeza reflete na vida das pessoas. Os jovens da periferia merecem, assim como narrou Noêmia, ” a libertação derramada em nosso canto” e essa libertação não virá cultuando violência, materialismo e banalização do corpo feminino . Sim, creio q alguns limites nas músicas são necessários, principalmente quando vão na direção contrária da valorização do povo, da luta, da alegria, da simplicidade, do cotidiano em comum, da reflexão, da sabedoria e do amor.



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