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As caravanas

outubro 28, 2017

Há poemas que parecem se ampliar e amplificar, quando se tornam canções. E Chico Buarque é um compositor que escreveu vários deles. Na questão musical, consegue transitar por ritmos musicais tão diversos como o blues, o choro, o baião, o rap, a marchinha e o samba. Além disso, as suas letras, algumas tão clássicas que parecem já estar entranhadas no imaginário popular (“A banda”, “Pedro pedreiro”, “Apesar de você”, “Geni e o zepelim”, “Cálice”), são jogos de linguagem altamente pensados e poéticos.

E Chico Buarque não tem idade. Se em 1966, ele ganhou o Festival da Música Popular da TV Record com “A banda” (dividiu o prêmio com “Disparada”, de Téo de Barros e Geraldo Vandré), em 2017 ele ganha o Prêmio Multishow de Canção do Ano com a música “As caravanas”. Nela, o que se precisa destacar, além dos arranjos e do beat box do funkeiro Rafael Mike, é a letra com alto sabor irônico e grande profundidade de descrição crítica.

Sem mais, vamos a ela:

 

AS CARAVANAS

(Chico Buarque)

 

É um dia de real grandeza, tudo azul,

Um mar turquesa à la Istambul

enchendo os olhos

E um sol de torrar os miolos,

Quando pinta em Copacabana

A caravana do Arará – do Caxangá, da Chatuba

 

A caravana do Irajá

o comboio da Penha,

Não há barreira que retenha

esses estranhos

Suburbanos tipo muçulmanos

do Jacarezinho

A caminho do Jardim de Alá.

 

É o bicho, é o buchicho[1], é a charanga[2]

Diz que malocam seus facões e adagas

Em sungas estufadas e calções disformes.

Diz que eles têm picas enormes

E seus sacos são granadas

Lá das quebradas da Maré

 

Com negros torsos nus deixam

em polvorosa[3]

A gente ordeira e virtuosa que apela

Pra polícia despachar de volta

O populacho pra favela

Ou pra Benguela, ou pra Guiné.

 

Sol, a culpa deve ser do sol

Que bate na moleira, o sol

Que estoura as veias, o suor

Que embaça os olhos e a razão

E essa zoeira dentro da prisão

Crioulos empilhados no porão

De caravelas no alto mar

 

Tem que bater, tem que matar

engrossa a gritaria

Filha do medo, a raiva é mãe da covardia

Ou doido sou eu que escuto vozes

Não há gente tão insana

Nem caravana do Arará

—

[1] perturbação da ordem; [2] conjunto musical barulhento; [3] em grande agitação

 

***

 

A ironia, como figura de linguagem, se constrói como uma dupla significação: há um sentido primeiro, expresso, mas há também um sentido subterrâneo, semioculto, como se o autor “piscasse o olho” para que o leitor perceba a referência que ele está fazendo. No caso, ele diz sem dizer, ou melhor, ele diz com uma máscara.

Na canção, a máscara é da “gente ordeira e virtuosa”, que desde o início estão encarando o mar de Copacabana. Se inicialmente é uma belíssima imagem, inclusive evocando Istambul (capital da Turquia, de onde deriva, inclusive, o nome da cor “turquesa”), há uma ruptura, inclusive na linguagem, que se assume mais informal e com gírias, quando surgem as caravanas de pessoas dos subúrbios.

Aí se apresenta não somente o título, mas o que se poderia chamar de o foco principal da canção. São os moradores de bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro que, na visão da voz que narra/canta a história, “invadem” a Zona Sul, dos bairros ricos de Copacabana ou de Ipanema e Leblon (o Jardim de Alá sendo um parque entre os dois últimos).

As caracterizações ganham contornos mais incisivos: são os “estranhos”, inclusive vistos como “muçulmanos”, ou seja, de uma cultura diferente, e isso justificaria uma repulsa por parte da voz poética. Para além disso, há o problema da desinformação, dos boatos, expressos pelos “diz que” da terceira estrofe, ou seja, no pensamento expresso na canção, a verificação na realidade se torna desnecessária, pois já se possui o conhecimento do senso comum e do estereótipo. Por isso, o que se apresenta na terceira estrofe é tanto a violência em potencial dos suburbanos (com facões e adagas malocadas) quanto a potência violenta que demonstrariam – e ambas simbolizadas dentro das sungas e calções.

Na quarta estrofe, antes de observar-se o conteúdo, vale apontar que ela se estrutura em duas frases. A primeira, ainda remetendo aos suburbanos, orbita a questão sexual, pois os “negros torsos nus” agitam “a gente ordeira e virtuosa” – com especial atenção aos adjetivos empregados. A segunda, tendo como sujeito os moradores ofendidos pela presença dos “estranhos”, mostra-os na reação: apelando para a polícia despachar o “populacho” para longe do campo de visão. E quanto mais longe, melhor (favela, Benguela – em Angola, ou Guiné – país africano, também existindo Guiné-Bissau, onde se fala português). Enfim, o que se depreende disso é a aversão sentida pelo que é desconhecido, e a opção encontrada, para não se sentir ameaçado, é expulsar o diferente, ao invés de conviver e tentar compreendê-lo.

Há a necessidade, então, de se encontrar alguém para culpar… E o sol se revela o culpado, pois esquenta, agita, deturpa o que se vê. Por certo que é nova ironia, pois ao mesmo tempo que se culpa algo tão alheio como o sol, Chico insere a imagem das prisões superlotadas e associa intimamente com o tráfico de escravos africanos. Coisas cujos culpados não estão tão longe quanto o Sol…

Na estrofe final, há uma dupla explosão: a da voz poética mascarada, presentificada pela “gritaria” que brada que bata e mate a todos os estranhos – e que merece um momento de reflexão o significado dessa grotesca árvore genealógica proposta do medo que gera a raiva que gera a covardia; e a da voz poética sem máscara (pois, para lembrar, tudo isso é uma ironia), que se assume como “eu” e que escuta vozes e se julga enganar. Esse final tenta chamar atenção para um possível equilíbrio de interpretação, pois não pode haver “gente tão insana” que pense assim – ao menos no mundo real, excluindo-se o virtual –, nem tampouco associar-se as pessoas dos subúrbios, famílias e grupos sociais, que visitam as praias da própria cidade, a caravanas, como se fosse um fluxo migratório…

Para reler a letra da canção, em associação com a música, clique aqui.

Há muitas outras canções de Chico Buarque em que se destaca o jogo entre o que se diz e o que se sugere. A inocência de uma mãe admirando seu filho morto que roubava pessoas (“O meu guri”); a evocação do pedido de Cristo para afastar dele o cálice, sendo máscara para afastar o “cale-se” da ditadura (“Cálice”); a apresentação daquelas mulheres de Atenas, que devem ser “miradas” não como exemplos a se seguir, mas como existências a se reconhecer e resgatar (“Mulheres de Atenas”).

De modo que Chico Buarque é o tipo de escritor que se mantém atento a cada palavra usada, a cada sílaba que pode soar em harmonia com as demais, criando cadências e rimas internas. E que formula diferentes vozes líricas, conforme a mensagem que se quer transmitir: torna-se mulher, malandro, prostituta, trovador, velho, criança. Mas tão somente como elemento composicional de ficção e imaginação das suas cantigas e não como o Chico Buarque de-verdade.

E se há interpretações equivocadas, enfim, são coisas…

E pronto!

 

por Saulo Gomes Thimóteo

 

caravanasChico Buarqueironia
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Literatura brasileira

sthimoteo

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4 Comments


Carlos
July 18, 2019 at 3:34 pm
Reply

Prezado professor,

se me permite um adendo à sua brilhante análise, vejo em “a culpa deve ser do dol” uma referência aO Estrangeiro, de Albert Camus.



Anthony Andrade
January 2, 2020 at 7:21 am
Reply

Caro professor, ótima análise!

Uma das muitas coisas interessantes dessa canção é o seu sabor do Oriente médio. Alem das óbvias, a poesia parece fazer até palavras indígenas soamrem como vagamente árabes (Arará, Irajá)…

Quando Trump fala dos fluxos migratórios da América Latina para os EUA ele usa exatamente o termo “caravanas”, palavra de origem árabe, criando uma associação entre dois grupos de estrangeiros “indesejáveis”: o latino e médio oriental. O eu-lírico da poesia de Chico vai um passo além, de modo que todos os pretos e pobres são agora (estereo)tipo muçulmano, tornando-se uma denúncia tanto local como universal, que se desloca do microcosmo do Rio de Janeiro para abarcar outros espaços e outros tempos.

A comparação dos sacos dos invasores com granadas, além de reforçar a imagem da potência reprodutiva “explosiva” também relembra aquela outra invasão de africanos, esses propriamente muçulmanos: o Emirado de Granada, na Espanha, mostrando raízes mais antigas desse conflito entre a Europa (ordeira, cristã, branca) e a África. Cada saco é uma granada mas também uma possível nova Granada; uma ameaça de conquista seja através da violência ou da miscigenação.
Um abraço



    sthimoteo
    January 2, 2020 at 5:58 pm
    Reply

    Muito boa complementação. Obrigado

Bianca
October 10, 2021 at 8:26 am
Reply

Professor,

Gostaria de parabenizá-lo pela análise! Excelente! As complementações nos comentários também foram muito boas!



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