Um escritor que habita o imaginário de praticamente todos os leitores brasileiros é Monteiro Lobato. Evocando os personagens do Sítio do Pica-pau amarelo, nos livros, nas versões para televisão, nos jogos e desenhos, enfim, o universo de Emília, Narizinho, Pedrinho e Visconde de Sabugosa acompanha crianças de todas as idades desde a metade do século XX.
Porém Monteiro Lobato não é apenas o escritor que revolucionou a literatura infantil. Ele também é um contista excepcional, com uma grande tendência ao humor e ao riso, extraindo de situações cotidianas uma interpretação cômica. Por certo que não são todos (basta ler “Negrinha” para ver a hipocrisia e o abismo entre as classes), mas diversos contos de Cidades mortas e Urupês trazem essa linha do inusitado. É o que acontece em “O fígado indiscreto”, em que o tímido rapaz Inácio vai jantar com toda a família Lemos, pensando em seu namoro e possível casamento com a filha do dono da casa. Infelizmente, e como sempre acontece, uma série de incidentes na presença dos sogros vai fazendo da noite um desastre interno para Inácio, e tudo porque não gostava de comer fígado…
Sem mais, vamos a ele:
O FÍGADO INDISCRETO
(Monteiro Lobato)
Que há um Deus para o namoro e outro para os bêbados está provado — a contrario sensu. Sem eles como explicar tanto passo falso sem tombo, tanto tombo sem nariz partido, tanta beijoca lambiscada a medo sem maiores consequências afora uns sobressaltos desagradáveis, quando passos inoportunos põem fim a duos de sofá em sala momentaneamente deserta?
Acontece, todavia, que esses deuses, ao jeito de Homero, também cochilam: e parte o borracho[1] o nariz de encontro ao lampião, ou a futura sogra lá pilha[2] Romeu e Julieta em flagrante contato de mucosas, petrificando-os com o clássico: “Que pouca vergonha!…”
Outras vezes acontece aos protegidos decaírem da graça divina.
Foi o que sucedeu a Inácio, o calouro, e isso lhe estragou o casamento com a sinharinha Lemos, boa menina a quem cinquenta contos de dote faziam ótima.
Inácio era o rei dos acanhados. Pelas coisas mínimas avermelhava, saía fora de si e permanecia largo tempo idiotizado.
O progresso do seu namoro foi, como é natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, tacitamente concertadas[3] numa conspiração contra o celibato[4] do futuro bacharel. Uma das manobras constou do convite que ele recebeu para jantar nos Lemos em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.
Inácio barbeou-se, laçou a mais famosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com loção de violeta e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquel’hora. Levou consigo, entretanto, para mal seu, o acanhamento. E daí proveio a catástrofe…
Havia mais moças na sala, fora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com a benévola curiosidade a que faz jus um possível futuro parente.
Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo um tanto desmontado com o papel de galã à força que lhe atribuíam. Uma das moças, criaturinha de requintada malícia, muito “saída” e “semostradeira”, interpelou-o sobre coisas de coração, ideias relativas ao casamento e também sobre a “noivinha”, tudo com meias palavras intencionais; sublinhadas de piscadelas para a direita e para a esquerda.
Inácio avermelhou e tartamudeou[5] palavras desconchavadas, enquanto o diabrete maliciosamente insistia: “Quando os doces, seu Inácio?”
Respostas mascadas, gaguejadas, ineptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.
Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no equilíbrio. Por dá cá aquela palha[6] o pobre rapaz mudava-se de si para fora, sofrendo todos os horrores consequentes. A culpada aqui foi a dona da casa. Serviu-lhe D. Luísa um bife de fígado, sem consulta prévia.
Esquisitice dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes.
Esquisitice do Inácio: nascera com a estranha idiossincrasia[7] de não poder sequer ouvir falar em fígado. Seu estômago, seu esôfago e talvez seu próprio fígado tinham pela víscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse Inácio em contrariá-los: amotinavam-se[8], repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.
Nesse dia, mal D. Luísa o serviu, Inácio avermelhou de novo e novamente saiu fora de si. Viu-se só, desamparado e inerme[9] ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera, a exigir, com império, respeito às suas antipatias. Parlamentou[10] com o órgão digestivo, mostrou-lhe que mau momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalmá-lo a goles de clarete[11], jurando eterna abstenção para o futuro. Pobre Inácio! A porejar suor gelado na asa do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era cristã pelos heréticos; contou um, dois, três e glug! engoliu meio fígado sem mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache[12]. E Inácio, de olhos arregalados, imóvel, esperou a revolução intestina.
Em redor, a alegria reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitar o suplício daquele mártir posto a tormentos de uma nova espécie.
— Você já reparou, Miloca, na “ganja”[13] da Sinharinha? – disse uma sirigaita de “beleza” na testa. – Está como quem viu o passarinho verde… – e olhou de soslaio[14] para Inácio.
O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava na auscultação das vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída: tinha ainda diante de si a segunda parte do fígado engulhento. Era mister[15] atacá-lo e concluir de vez a ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e — um, dois, três: glug! — lá rodou esôfago abaixo o resto da miserável glândula.
Maravilha! Por inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar lorpa[16] dos ressuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente[17], de gozo, como riria Hércules após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo os rumores do mundo, seu cérebro entrava a funcionar normalmente e seus olhos volveram outra vez às visões habituais.
Estava nessa beatitude, quando:
— Não sabia que o senhor gostava tanto de fígado, disse D. Luísa, vendo-lhe o prato vazio. Repita a dose!
O instinto de conservação de Inácio pulou em guarda. E, fora de si outra vez, o pobre moço exclamou, tomado de pânico:
— Não! Não! Muito obrigado…
— Ora deixe-se de luxo! Tamanho homem com cerimônias em casa de amigos. Coma, coma, que não é vergonha gostar de fígado. Aí está o Lemos, que se pela por uma isca.
— Iscas são comigo, confirmou o velho. Lá isso não nego. Com elas ou sem elas[18], nunca as enjeitei. Tens bom gosto, rapaz! Serve-lhe, serve-lhe mais, Luísa.
E não houve salvação! Veio para o prato de Inácio um novo naco, e este formidável, dose dupla.
Não se descreve o drama criado no seu organismo. Nem um Shakespeare, nem Conrad — ninguém dirá nunca os lances trágicos daquela estomacal tragédia sem palavras. Nem eu, portanto. Direi somente que à memória de Inácio acudiu o caso da Nora de Ibsen na Casa de boneca, e disfarçadamente ele aguardou o milagre.
E o milagre veio! Um criado estouvadão, que entrava com o peru, tropeçou no tapete e soltou a ave no colo de uma dama. Gritos, rebuliço, tumulto. Num lampejo de gênio, Inácio aproveitou-se do incidente para agarrar o fígado e metê-lo no bolso.
Salvo! Nem D. Luísa, nem os vizinhos perceberam o truque; — e o jantar chegou à sobremesa sem maior novidade.
Antes da dançata lembrou alguém recitativos e a espevitadíssima Miloca veio ter com Inácio.
— A festa é sua, Dr. Inácio. Nós queremos ouvi-lo. Dizem que o doutor recita admiravelmente! Vamos, um sonetinho de Bilac. Não sabe? Olha o luxinho! Vamos, vamos! Repare quem está no piano. Ela… Nem assim? Mauzinho! Quer decerto que a Sinharinha insista?… Ora, até que enfim! A Doida de Albano? Conheço sim, é linda, embora um pouco fora da moda. Toque a Dalila, Sinharinha, bem piano, assim…
Inácio, vexadíssimo, vermelhíssimo, já em suores, foi para pé do piano onde a futura consorte preludiava a Dalila em surdina. E declamou a Doida de Albano.
Pelo meio dessa hecatombe[19] em verso, aí pela quarta ou quinta desgraça, uma baga de suor escorrida da testa parou-lhe na sobrancelha, comichando qual importuna mosca. Inácio lembra-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço vem o fígado, que faz plaf! no chão. Uma tossida forte e um pé plantado sobre a infame víscera, manobras do instinto, salvam o lance.
Mas desde esse momento a sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que tanto se fizera rogar, não queria agora deixar o piano. E mal terminava um recitativo, logo iniciava outro, sem que ninguém lho pedisse. É que o acorrentava àquele posto, novo Prometeu, o implacável fígado…
Inácio recitava. Recitou, sem música, o Navio negreiro, As duas ilhas, Vozes da África, O Tejo era sereno.
Sinharinha, desconfiada, abandonou o piano. Inácio, firme. Recitou o Corvo de Edgar Poe, traduzido pelo sr. João Kopke; recitou o Quisera amar-te, o Acorda donzela: borbotou poemetos, modinhas e quadras.
Num canto da sala sinharinha estava chora não chora. Todos se entreolhavam. Teria enlouquecido o moço?
Inácio, firme. Completamente fora de si (era a quarta vez que isso lhe acontecia naquela festa) e falto já de recitativos de salão, recorreu aos Lusíadas. E declamou As armas e os barões, Estavas, linda Inês, Do reino a rédea leve, o Adamastor — tudo!…
E, esgotado Camões, ia-lhe saindo um “ponto” de Filosofia do Direito — A escola de Bentham — a coisa última que lhe restava de cor na memória, quando perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu, patenteando aos olhos arregalados da sala a infamíssima víscera de má morte…
O resto não vale a pena contar. Basta que saibam que o amor da sinharinha morreu nesse dia; que a conspiração matrimonial falhou; e que Inácio mudou de terra. Mudou de terra porque o desalmado major Lemos deu de espalhar pela cidade inteira que Inácio era, sem dúvida, um bom rapaz, mas com um grave defeito: quando gostava de um prato, não se contentava de comer e repetir — ainda levava escondido no bolso o que podia…
—
[1] bêbado; [2] surpreende; [3] expressamente combinadas; [4] solteirice; [5] gaguejou; [6] expressão que significa “por qualquer mínima coisa”; [7] comportamento particular de uma pessoa; [8] rebelavam-se; [9] sem defesas; [10] conversou buscando um acordo; [11] vinho tinto mais claro; [12] empanturramento; [13] vaidade; [14] de lado; [15] necessário; [16] bobo; [17] de um modo bobo; [18] “com elas ou sem elas” é expressão portuguesa, para indicar que é prato que pode ser servido com batatas ou sem batatas; [19] grande catástrofe;
***
O conto é de 1904, mas, dadas as proporções, trata das relações atemporais entre pais e filhos, ou melhor, entre sogros e genros. Apelando inicialmente para a figura de um deus específico protetor dos casais, foca-se no desgraçado por esse deus, que seria o rapaz Inácio. E a ação toda acontece na noite do jantar, centrando-se nesse cenário, com a visão particular do personagem.
Duas coisas chamam a atenção nesse conto: a primeira é a junção, a essa história tão trivial quanto iscas de fígado, da grande erudição de Monteiro Lobato. Ele evoca Homero, Hércules, Shakespeare, Ibsen, Camões, Olavo Bilac, uma série de autores clássicos e contemporâneos de Lobato. Inclusive a “Doida de Albano”, que é um poema romântico do escritor português Rodrigues Cordeiro e que conta, em uma cidade da Itália, como um rapaz, Paulo, cumprindo a promessa de vingar a morte do pai, teve de matar o pai de sua amada. Então, ela pede ao rapaz que vingue a morte do seu pai, sem saber que Paulo foi o assassino. Por fim, usando o mesmo punhal, o rapaz se mata, cumprindo a vingança. A moça enlouquece e se torna a doida de Albano, que vai vagando e pedindo que alguém a mate. Enfim, o que se destaca nessa lista de autores citados é mostrar como a sociedade tinha um conhecimento cultural, mesmo que usado mais com a ideia de entreter um jantar.
Outro elemento interessante do conto é como o narrador vai jogando com as palavras, criando uma “guerra intestina” devido à “figadal aversão”, inclusive criando novamente o jogo entre as esferas, comparando-se o sacrifício de Inácio aos martírios cristãos e aos trabalhos de Hércules. E mesmo quando Inácio deve permanecer preso no piano, com o pé sobre o fígado, faz-se uma comparação com o mito grego de Prometeu, que foi condenado por Zeus a ficar acorrentado eternamente a uma pedra, com uma águia vindo comer-lhe um pedaço do… fígado, que se regeneraria todos os dias, para ser novamente comido.
Nesse jogo criado, o conto se desenvolve nas seguintes etapas: momento da tensão diante do fígado e resolução do problema; renovação da tensão, com a sogra colocando novo e maior pedaço de fígado; distração e transferência do problema do prato para o bolso; mudança de cenário para o piano e fígado caindo no chão; nervosismo crescente de Inácio, até a revelação final. E seu final trágico se torna desfecho cômico, com a interpretação trocada do que realmente aconteceu.
Toda a literatura de Lobato vai costurando esses dois lados, basta lembrar que, no Sítio, há a leitura de Dom Quixote, vê-se toda a mitologia greco-romana, conhece-se aritmética, gramática, geografia. Monteiro Lobato foi um grande defensor de unir a alta cultura com o universo popular, e muitos de seus contos também vão nessa linha.
É isso que se deve procurar: não se isolar num conhecimento erudito e desprezar o que vem “do povo”, nem julgar os textos clássicos como algo distante e que perdeu a conexão com a realidade. Assim, pode-se apreciar os heróis modernos, inclusive os bravos cavaleiros que enfrentam os jantares na casa da família dos sogros.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimoteo
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