José Saramago é um escritor do desassossego. Em seus romances, contos, peças teatrais, crônicas e poemas, o que há é uma necessidade de ver o que as palavras escondem, que intenções se deixam mostrar e que fazemos nós, enquanto cidadãos, para remover injustiças ou, ao menos, reconhecê-las.
Nesse aniversário de 97 anos do escritor, mostra-se uma crônica, intitulada “A neve preta”, em que, após a conversa despretensiosa sobre as crianças e sua forma simples e simbólica de ver o mundo (bem melhor que a objetividade utilitária que os adultos insistem em fingir que acreditam), surge a explosão de humanidade que se revela na trivialidade de uma tarefa escolar. E como sempre é bom afirmar que é preciso ter cuidado com as crianças…
Sem mais, vamos a ele:
A NEVE PRETA
(José Saramago)
Bem sei que estamos fora da estação: o Inverno já lá vai, temos agora aí o calor, a praia, as sombras das grandes árvores, o sol duro que nos amolece, as tardes apetecidas, as noites mornas que ondulam como pesados e macios veludos negros. Falar de neve em Junho mostra uma lamentável falta de sentido da oportunidade. Mas, tal como debaixo dos pés se levantam os trabalhos, também o acaso dos encontros pode inverter a ordem das estações e trazer o Inverno para o pino do Verão e fazer passar por nós um terrível frio que nenhum agasalho será capaz de vencer. Porque, não me cansarei nunca de o dizer, é preciso muito cuidado com as crianças.
Estes pequenos filhos dos homens têm andado pelas minhas crónicas. Mas de crianças tenho falado como quem as conhece bem, só porque também por lá passou. E agora pergunto: que são as crianças? Dez mil pedagogos se preparam para me responder. Afasto de antemão as respostas, umas que já conheço, outras que adivinho, e torno a perguntar: que são crianças?
Que seres estranhos são esses que viram para nós os seus rostos frescos, que nos perturbam às vezes com um olhar subitamente profundo e sábio, que são irónicos e gentis, débeis e implacáveis, e sempre tão alheios? Temos pressa de os ver crescer, de os admitir no clã dos adultos sem surpresas. Somos impacientes, nervosos, porque estamos diante de uma espécie desconhecida… Quando passam a ser nossos iguais, falamos-lhes da infância que tiveram (a que recordamos, como observadores do lado de fora) e sentimo-nos quase ofendidos porque eles não gostam de ouvir lembrar uma situação em que já não se reconhecem. São adultos, agora: outra espécie humana, portanto.
Nessa infância está, por exemplo, a história que vou contar e que devo a um desses tais encontros de acaso. E depois de eu a reproduzir aqui, dir-me-ão se não tenho razões para insistir: é preciso cuidado com as crianças… Não o cuidado comum, que tende a prevenir acidentes, aqueles que aparecem sob esta rubrica nas notícias dos jornais, mas um outro cuidado, mais melindroso e subtil. Eu explico.
Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta: «Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira.» Assim ou não assim, os alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer nestes casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o Menino Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e apreciou. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», enfim, os transes por que todos nós passámos. De repente… Ah, mas é preciso muito cuidado com as crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu…»
Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu?
***
A crônica possui 50 anos (feita no contexto da chegada à Lua em 1969) e pode ser dividida em três momentos, como se seguisse a um afunilamento da temática até o exemplo ilustrativo. O primeiro parágrafo, no tom típico do cronista que deve contextualizar seu leitor no universo pontual criado naquele texto, explica (sem ainda explicar muito) suas intenções com o título.
Se a crônica feita nos princípios do Verão português (em junho) sugere a presença de neve, é por querer subverter o usual, razão pela qual põe a nota de suspense do “acaso dos encontros pode inverter a ordem das estações (…) e fazer passar por nós um terrível frio que nenhum agasalho será capaz de vencer”. Aí, descendo um degrau no mistério, surge a menção às crianças.
O segundo momento da crônica trata sobre a criança, enquanto ser à parte. Desviando-se de definições acadêmicas (dos “dez mil pedagogos”), o que Saramago busca é compreender a lógica e a essência infantil de ver as coisas, algo que se perde tão logo se entra na vida adulta, como se se tornasse uma “outra espécie humana”. (Algo que também seria tratado, por exemplo, em O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, ou O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder).
Vem então o terceiro momento, da narrativa propriamente dita, após a ressalva de que se deve ter cuidado com as crianças, ou seja, deve-se prestar muita atenção ao que as crianças fazem, especialmente no que elas têm a nos ensinar.
A atividade de escola vai sendo descrita no modo altamente trivial pelo qual todos, quando crianças, possivelmente passamos. Mas, enfim chega-se ao clímax na história, com a professora “perturbada” pelo desenho da neve preta. E também com o questionamento (até um pouco exagerado) das motivações da criança.
Com isso, como se mostrasse que faltou à professora a ideia de que se deveria ter cuidado com as crianças, vem o desfecho, da neve preta devido à morte da mãe no Natal, fazendo com que o “terrível frio” anunciado no início atinja o leitor desavisado.
Na conclusão, o que fica é o alerta ao leitor, sentindo-se tão elevado como pertencente à Humanidade por conseguir chegar à Lua, que não percebe a necessidade de chegar antes ao coração de uma criança que canaliza sua tristeza pintando a neve de outra cor.
Cinquenta anos depois, parece que antes chegaremos a Marte do que compreenderemos o próximo.
E pronto.
por Saulo Gomes Thimoteo
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