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Romance LIX ou Da reflexão dos justos

abril 21, 2019

Há uma tendência aos livros didáticos e professores reduzirem os autores a seus dois ou três textos mais famosos. Camões será o autor pontual de “Amor é fogo que arde sem se ver” (quando não se pensa que foi Renato Russo que compôs…), apesar de ter feito todo Os Lusíadas e milhares de outros poemas. Drummond será o “No meio do caminho tinha uma pedra” e o “E agora, José” (geralmente, só esses primeiros versos ou a primeira estrofe), esquecendo-se de todo o resto.

E talvez uma das mais ofuscadas da literatura brasileira seja Cecília Meireles. Que escreveu os seus poemas infantis do Ou isto ou aquilo e poemas como “Retrato” e “Lua adversa”, mas que são apenas alguns tijolos em todo o palácio ceciliano. É dela, por exemplo, o Romanceiro da Inconfidência (1953), que conta o episódio da Inconfidência Mineira em 96 poemas e forma-se como uma verdadeira aula de história reflexiva sobre o que foi todo esse movimento, seus integrantes e, especialmente, seu mártir: Joaquim José da Silva Xavier. Em homenagem a ele, apresenta-se um dos poemas feitos por Cecília ao Tiradentes.

Sem mais, vamos a ele:

ROMANCE LIX OU DA REFLEXÃO DOS JUSTOS

(Cecília Meireles)

 

Foi trabalhar para todos…

– e vede o que lhe acontece!

Daqueles a quem servia,

já nenhum mais o conhece.

Quando a desgraça é profunda,

que amigo se compadece?

 

Tanta serra cavalgada!

Tanto palude[1] vencido!

Tanta ronda perigosa,

em sertão desconhecido!

– E agora é um simples Alferes[2]

louco – sozinho e perdido.

 

Talvez chore na masmorra.

Que o chorar não é fraqueza.

Talvez se lembre dos sócios

dessa malograda[3] empresa.

Por eles, principalmente,

suspirará de tristeza.

 

Sábios, ilustres, atraentes,

quando tudo era esperança…

E, agora, tão deslembrados

até da sua aliança!

Também a memória sofre,

e o heroísmo também cansa.

 

Não choram somente os fracos.

O mais destemido e forte,

um dia, também pergunta,

contemplando a humana sorte,

se aqueles por quem morremos

merecerão nossa morte.

 

Foi trabalhar para todos…

Mas, por ele, quem trabalha?

Tombado fica seu corpo,

nessa esquisita batalha.

Suas ações e seu nome,

por onde a glória os espalha?

 

Ambição gera injustiça.

Injustiça, covardia.

Dos heróis martirizados

nunca se esquece a agonia.

Por horror ao sofrimento,

ao valor se renuncia.

 

E, à sombra de exemplos graves,

nascem gerações opressas[4].

Quem se mata em sonho, esforço,

mistério, vigílias, pressas?

Quem confia nos amigos?

Quem acredita em promessas?

 

Que tempos medonhos chegam,

depois de tão dura prova?

Quem vai saber, no futuro,

o que se aprova ou reprova?

De que alma é que vai ser feita

essa humanidade nova?

 

—

[1] pântano; [2] na época da Colônia e do Império, militar abaixo do posto de tenente; [3] frustada, sem o resultado que se esperava; [4] oprimidas, humilhadas

 

***

 

O “Romanceiro” é uma composição literária da Idade Média e tinham esse tom da tradição oral, declamados ao som de instrumentos, e com um jogo entre o lirismo e a narrativa. É o modo pelo qual Cecília Meireles encontra para expor a Inconfidência Mineira como o jogo de interesses entre os poderosos, de Portugal e do Brasil, e dos levantes populares inconformados com a opressão.

Nesse poema, a reflexão proposta gira em torno da figura de Tiradentes, traído, preso, condenado e prestes a morrer, além de abandonado por todos. A poeta usa os sinais de pontuação como modo de enfatizar a ideia de um processo mental do alferes: as reticências lançam algumas cogitações, as exclamações constatam o caminho feito e o abismo cavado, as interrogações se fazem, não apenas para si mesmo, mas como prolongamento da autora e para os leitores.

Em complemento, a construção da cena se estabelece em três níveis: 1) o do passado, em que se vê a esperança que havia, quando todos eram “sábios, ilustres, atraentes”, e todos estavam prontos a lutar e a libertar o Brasil; 2) o do presente, com Tiradentes preso, na masmorra, questionando o porquê de ter lutado, se agora todos o renegam, e (talvez) chorando, não por fraqueza, mas porque “o heroísmo também cansa”, ainda mais quando aqueles por quem se luta talvez não merecessem o esforço; 3) e o do futuro, em que se pergunta de que vale a glória, se conquistada por um sofrimento que os outros esquecem ou omitem.

Em 2019, o dia de Tiradentes caiu na Páscoa, mas Joaquim José da Silva Xavier não foi Jesus (embora ainda se tenha esse retrato romântico no inconsciente coletivo e possamos pensar em semelhanças). Tiradentes foi alguém que lutou por acreditar que o sonho da liberdade futura é algo que se conquista todos os dias, em constante renovação. Foi abandonado e sua morte foi um “aviso” para todos que quisessem se revoltar. E Cecília Meireles apresenta esse personagem histórico e todo o seu contexto, não para louvar uma idealização de herói da pátria, mas como contínuo questionamento aos leitores do século XX (e XXI) de qual é o legado de Tiradentes? Quem pode se sentir liberto de opressões e lutar pelo que acredita? Tiradentes, não mais homem, mas tornado uma ideia, um sentimento, dissemina-se nas novas gerações, mas é preciso que se pergunte: “De que alma é que vai ser feita / essa humanidade nova?”

 

E pronto!

Feliz Páscoa!

por Saulo Gomes Thimóteo

Cecília MeirelesInconfidência Mineirapoemaséculo XXTiradentes
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Literatura brasileira

sthimoteo

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