Em muitos aspectos, a banda Legião Urbana se mantém atual, pois aliou a “revolta” da juventude com um questionamento fundamentado e coerente. Composições como “Geração Coca-Cola” (1985), “Faroeste Caboclo” (1987) e “Que país é esse?” (1987) tornaram-se hinos que, mesmo passados mais de 30 anos, impõem-se por seus versos críticos e fortes.
Outra composição, presente em O Descobrimento do Brasil (1993), é “Perfeição”. Ela destoa das demais canções do álbum, pois predomina um tom pessimista tanto em relação ao Brasil, quanto ao próprio ser humano. Talvez muito mais realista do que pessimista, mas é uma canção que deve ser lida e ouvida, pois parece que os 26 anos de distância não existem…
Sem mais, vamos a ela:
PERFEIÇÃO
(Renato Russo/Dado Villa-Lobos/Marcelo Bonfá)
Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso estado, que não é nação
Celebrar a juventude sem escola
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião
Vamos celebrar Eros e Tânatos [1]
Persephone e Hades [2]
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade
Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda hipocrisia e toda afetação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias:
É a festa da torcida campeã
Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo o que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos o hino nacional
(a lágrima é verdadeira)
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão
Vamos festejar a inveja
A intolerância e a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isso – com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que também não podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção
Venha, meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão
Venha, o amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça:
Venha, que o que vem é perfeição
—
[1] O primeiro é o deus grego do Amor, também chamado de Cupido. O segundo é o deus grego da Morte. O jogo entre os dois são as pulsões dos seres humanos, no conflito entre vida e morte; [2] Hades é o deus grego do mundo inferior, para onde vão os mortos. Ele apaixonou-se por Perséfone, deusa grega do mundo vegetal, que passa metade do ano com ele (momento em que a Terra perde a vida, durante o inverno) e a outra metade no Olimpo (momento em que a Terra renasce, durante a primavera). Simboliza, então, o ciclo de morte e renascimento.
***
A estrutura da canção não obedece métrica ou rima precisas, mas o ritmo que se apresenta, especialmente na primeira parte, dá um tom quase recitativo aos versos. Toda a letra se constrói em torno de verbos no imperativo (“Vamos celebrar”, na primeira estrofe, “Venha”, na segunda). Aliás, há um paradoxo por toda a canção, pois pede-se que se celebre uma lista de aspectos negativos que vão da esfera social à esfera individual. Tal celebração dá-se pelo “nós”, isso é, são elementos compartilhados pelo coletivo, que não pertencem exclusivamente ao poeta, nem ao leitor/ouvinte, como a “nossa tristeza”, “nossa vaidade”, “nossa desunião”.
A estupidez, primeiro elemento a ser celebrado, torna-se algo universal – e será encerrada a primeira parte celebrando-se a estupidez individual do próprio cantor. Essa oscilação também se realiza entre o lado concreto (“juventude sem escola”, “impostos, queimadas, mentiras e sequestros”) e o lado alegórico (“nosso castelo de cartas marcadas”, “alimentar o que é maldade”, “nosso passado de absurdos gloriosos”). O último exemplo, inclusive, reflete o jogo dos tempos, em que o que passou reveste-se de glória para alguns, mas se observado racionalmente pode ser considerado absurdo, brutal, e mesmo revoltante aos olhos do agora.
Celebra-se, ironicamente, também, a “inveja, a intolerância e a incompreensão”, “não ter a quem ouvir, não se ter a quem amar”, além de “festejar a violência” e a “aberração de toda a nossa falta de bom senso”. Enfim, aprofundar todos os itens é redundante, pois boa parte deles são autoexplicativos e basta um olhar pelas notícias, pelas ruas ou pelas redes sociais para ver como essa onda (que não é nova) ameaça arrastar a tudo e a todos para dentro de suas próprias cápsulas e bolhas.
Eis que, na segunda estrofe, cujo ritmo muda e adquire um toque mais leve, parece reverter a situação e indicar uma esperança. Os termos também mudam, e a “verdade” que liberta, o “amor” que abre a porta e a “primavera” que chega vêm para substituir a “maldade e a ilusão”. O que fica é a impressão de que tudo isso pode ser possível, se houver por parte do leitor/ouvinte o aceite ao convite do “venha”, e ele ir à perfeição…
O que se deve fazer, afinal, é ouvir a música, ter consciência das mazelas todas citadas e que existem pelo conjunto de milhões de ações de todas as esferas sociais, acumuladas em todas as épocas passadas e agir. Deter-se em críticas abstratas ao governo ou a “inimigos ocultos” nada acrescentam ao debate ou à mudança. É preciso que cada pessoa, em seu “pequeno universo” também deve agir, mostrando que é parte harmônica no combate a injustiças com o outro, que é todo aquele que não sou eu, mas que merece o mesmo respeito que julgo merecer.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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