Na obra de Clarice Lispector, algo que se destaca é como, a partir de uma experiência ou cena trivial, a voz narrativa ou o personagem descobre uma súbita revelação, como se um sentido desconhecido se abrisse e toda a existência humana se reconfigura, não podendo mais voltar ao estado anterior. A isso se pode chamar “epifania”, que se na Bíblia vem da revelação da Estrela de Belém do lugar onde nascera Jesus, em Clarice são as descobertas da grandiosidade que existem em todas as mínimas coisas.
No conto “Uma história de tanto amor”, a história mostra como uma menina descobre os diferentes modos de amar (e de sofrer) a partir de sua relação com três galinhas. Nele, dando simbologia aos pensamentos da menina e às ações das galinhas, Clarice apresenta toda a complexidade das relações e da construção da própria identidade.
Sem mais, vamos a ele:
UMA HISTÓRIA DE TANTO AMOR
(Clarice Lispector)
Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém[1], e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre[2] dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café — e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção[3]. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:
— Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!
Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:
— Nós comemos Petronilha.
A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:
— Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.
Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada[4] e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.
Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.
Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.
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[1] grupo de mulheres que se relacionam com um mesmo homem; [2] uma boa ideia; [3] sentido, interpretação; [4] teimosa, persistente.
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Em termos de cenário e enredo, o conto é altamente trivial: no interior de Minas Gerais, uma menina traça sua rotina de cuidar de suas galinhas, sendo que às vezes elas servem de almoço para a família. Mas Clarice Lispector vê nisso um campo para a transição da menina para a mulher, da fase infantil para a fase da compreensão das ações e dos simbolismos que existem nelas.
Há duas questões principais que se entrelaçam no conto: a relação galinha-galo e as três relações possíveis da menina com as galinhas.
Na primeira, se a galinha orbita a sua própria inconsciência (algo também visto nos contos “Uma galinha” ou “O ovo e a galinha” ou na história infantil “A vida íntima de Laura”), a menina torna-se aquela que conhece a alma e os anseios galináceos, pela observação. E ela, na sua visão infantil, vai traçando paralelos entre as galinhas e o galo, e entre elas e o homem. Vem daí o estranhamento que percebe na gíria da palavra “galinha”.
E se ela começa a notar as diferenças nessa relação, a voz narrativa demonstra, nas três galinhas, três modos de amar que a menina projeta: Petronilha, a primeira, que é morta e comida enquanto a menina passeava, é o amor não correspondido e subitamente interrompido. Além disso, é o primeiro contato efetivo da menina com a morte. O consolo da mãe, de que ela passaria a fazer parte de cada um, quando comida, não a conforma, pois ainda não entende essa noção de perda, de ausência, de frustração do amor doado.
A segunda, Pedrina, sendo a secretamente preferida da menina, demandou mais atenção, uma vez que só sobrou ela das suas galinhas. E toda a atenção dada, o ato de enrolar a galinha em panos e pôr nos tijolos quentes, torna-se a forma do amor sufocante e superprotetor. Ironicamente, esse zelo em excesso para proteger foi o que matou Pedrina. Mas há o ato de autoconvencimento que a menina capta, ou seja, ela adquire consciência de que suas ações impactam na relação amorosa dela com o outro, que também é um sujeito.
Por fim, surge Eponina, destinatária de “um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor”. Com a menina mais velha, a terceira galinha é apontada de modo mais pontual, tanto que a história se concentra no comer a Eponina. E a menina sabe que o outro (a galinha, no caso) é um indivíduo que nunca estaria totalmente conectado a ela. Quando ela a devora, mesmo sem fome, com um prazer selvagem, é por querer essa fusão, essa ligação íntima e impossível entre dois seres.
Se a menina é um ser feito para amar, essas experiências simbólicas com as galinhas tornam-se etapas que ela precisa passar para poder enfrentar outros relacionamentos, muito mais complexos, quando cresce e se torna moça.
Clarice Lispector, como poucos autores, revela em frases precisas e profundas os dilemas e conflitos da existência humana e das relações com o outro. Além disso, não cai em ensinamentos, mas lança ao leitor as angústias dos personagens, como se dissesse “Aqui está, agora veja o que fará com isso”. Se o leitor passa pelo processo de revelação existencial a partir do cotidiano ou não é com cada um, mas Clarice consegue, pela escrita, tornar uma galinha mais que uma galinha e o outro muito mais que o outro.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
2 Comments
Que análise incrível! Objetiva e pontual. Obrigado!
Obrigado!