A literatura é a maneira de dizer uma coisa dizendo outra. A isso pode-se dar o nome de metáfora, de alegoria, de associação. O jogo de criar uma ficção para evocar elementos da realidade é uma forma de fabulação que o homem encontrou para desvendar o mundo sobre outros olhares. E o uso de animais e objetos, por seu valor simbólico, chama-se fábula ou apólogo. É o que fez Esopo, na Grécia antiga. É o que fez La Fontaine, na França do século XVII.
Machado de Assis, que se aventurava por diversos gêneros textuais, escrevendo romances, contos, poemas, peças teatrais, crônicas, também escreveu fábulas. A mais famosa (e que impera em todos os livros didáticos) é “Um apólogo”, que conta a batalha de argumentos entre uma agulha e uma linha. Mas há outra, tão interessante quanto, intitulada “História comum”, publicada em jornal em 1883 e depois no livro Escritos avulsos. Nela, o narrador-protagonista é um alfinete, que passa por uma grande aventura – para um alfinete, além de se ter uma visão de como era a rotina de finais do século XIX.
Sem mais, vamos a ele:
HISTÓRIA COMUM
(Machado de Assis)
… Caí na copa[1] do chapéu de um homem que passava… Perdoe-me este começo; é um modo de ser épico[2]. Entro em plena ação. Já o leitor sabe que caí, e caí na copa do chapéu de um homem que passava; resta dizer donde caí e por que caí.
Quanto à minha qualidade de alfinete, não é preciso insistir nela. Sou um simples alfinete vilão[3], modesto, não alfinete de adorno, mas de uso, desses com que as mulheres do povo pregam os lenços de chita, e as damas de sociedade os fichus[4], ou as flores, ou isto, ou aquilo. Aparentemente vale pouco um alfinete; mas, na realidade, pode exceder ao próprio vestido. Não exemplifico; o papel é pouco, não há senão o espaço de contar a minha aventura.
Tinha-me comprado uma triste mucama[5]. O dono do armarinho vendeu-me, com mais onze irmãos, uma dúzia, por não sei quantos réis; coisa de nada. Que destino! Uma triste mucama. Felicidade, — este é o seu nome, — pegou no papel em que estávamos pregados, e meteu-o no baú. Não sei quanto tempo ali estive; saí um dia de manhã para pregar o lenço de chita que a mucama trazia ao pescoço. Como o lenço era novo, não fiquei grandemente desconsolado. E depois a mucama era asseada e estimada, vivia nos quartos das moças, era confidente dos seus namoros e arrufos[6]; enfim, não era um destino principesco, mas também não era um destino ignóbil[7].
Entre o peito da Felicidade e o recanto de uma mesa velha, que ela tinha na alcova[8], gastei uns cinco ou seis dias. De noite, era despregado e metido numa caixinha de papelão, ao canto da mesa; de manhã, ia da caixinha ao lenço. Monótono, é verdade; mas a vida dos alfinetes não é outra. Na véspera do dia em que se deu a minha aventura, ouvi falar de um baile no dia seguinte, em casa de um desembargador que fazia anos. As senhoras preparavam-se com esmero e afinco[9], cuidavam das rendas, sedas, luvas, flores, brilhantes, leques, sapatos; não se pensava em outra coisa senão no baile do desembargador. Bem quisera eu saber o que era um baile, e ir a ele; mas uma tal ambição podia nascer na cabeça de um alfinete, que não saía do lenço de uma triste mucama? — Certamente que não. O remédio era ficar em casa.
— Felicidade, diziam as moças, à noite, no quarto, dá cá o vestido. Felicidade, aperta o vestido. Felicidade, onde estão as outras meias?
— Que meias, nhanhã?
— As que estavam na cadeira…
— Uê! nhanhã! Estão aqui mesmo.
E Felicidade ia de um lado para outro, solícita, obediente, meiga, sorrindo a todas, abotoando uma, puxando as saias de outra, compondo a cauda desta, concertando o diadema[10] daquela, tudo com um amor de mãe, tão feliz como se fossem suas filhas. E eu vendo tudo. O que me metia inveja eram os outros alfinetes. Quando os via ir da boca da mucama, que os tirava da toilette[11], para o corpo das moças, dizia comigo, que era bem bom ser alfinete de damas, e damas bonitas que iam a festas.
— Meninas, são horas!
— Lá vou, mamãe! disseram todas.
E foram, uma a uma, primeiro a mais velha, depois a mais moça, depois a do meio. Esta, por nome Clarinha, ficou arranjando uma rosa no peito, uma linda rosa; pregou-a e sorriu para a mucama.
— Hum! hum! resmungou esta. Seu Florêncio hoje fica de queixo caído…
Clarinha olhou para o espelho, e repetiu consigo a profecia da mucama. Digo isto, não só porque me pareceu vê-lo no sorriso da moça, como porque ela voltou-se pouco depois para a mucama, e respondeu sorrindo:
— Pode ser.
— Pode ser? Vai ficar mesmo.
— Clarinha, só se espera por você.
— Pronta, mamãe!
Tinha prendido a rosa, às pressas, e saiu.
Na sala estava a família, dois carros à porta; desceram enfim, e Felicidade com elas, até à porta da rua. Clarinha foi com a mãe no segundo carro; no primeiro foi o pai com as outras duas filhas. Clarinha calçava as luvas, a mãe dizia que era tarde; entraram; mas, ao entrar caiu a rosa do peito da moça. Consternação[12] desta; teima da mãe que era tarde, que não valia a pena gastar tempo em pregar a rosa outra vez. Mas Clarinha pedia que se demorasse um instante, um instante só, e diria à mucama que fosse buscar um alfinete.
— Não é preciso, sinhá; aqui está um.
Um era eu. Que alegria a de Clarinha! Com que alvoroço me tomou entre os dedinhos, e me meteu entre os dentes, enquanto descalçava as luvas. Descalçou-as: pregou comigo a rosa, e o carro partiu. Lá me vou no peito de uma linda moça, prendendo uma bela rosa, com destino ao baile de um desembargador. Façam-me o favor de dizer se Bonaparte teve mais rápida ascensão. Não há dois minutos toda a minha prosperidade era o lenço pobre de uma pobre mucama. Agora, peito de moça bonita, vestido de seda, carro, baile, lacaio que abre a portinhola, cavalheiro que dá o braço à moça, que a leva escada acima; uma escada suada de tapetes, lavada de luzes, aromada de flores… Ah! enfim! eis-me no meu lugar.
Estamos na terceira valsa. O par de Clarinha é o Dr. Florêncio, um rapaz bonito, bigode negro, que a aperta muito e anda à roda como um louco. Acabada a valsa, fomos passear os três, ele murmurando-lhe coisas meigas, ela arfando de cansaço e comoção, e eu fixo, teso, orgulhoso. Seguimos para a janela. O Dr. Florêncio declarou que era tempo de autorizá-lo a pedi-la.
— Não se vexe; não é preciso que me diga nada; basta que me aperte a mão.
Clarinha apertou-lhe a mão; ele levou-a à boca e beijou-a; ela olhou assustada para dentro.
— Ninguém vê, continuou o Dr. Florêncio; amanhã mesmo escreverei a seu pai.
Conversaram ainda uns dez minutos, suspirando coisas deliciosas, com as mãos presas. O coração dela batia! Eu, que lhe ficava em cima, é que sentia as pancadas do pobre coração. Pudera! Noiva entre duas valsas. Afinal, como era mister[13] voltar à sala, ele pediu-lhe um penhor[14], a rosa que trazia ao peito.
— Tome…
E despregando a rosa, deu-a ao namorado, atirando-me, com a maior indiferença, à rua… Caí na copa do chapéu de um homem que passava e…
—
[1] parte oca do chapéu, onde se põe a cabeça; [2] grande, sublime, elevado; [3] algo grosseiro, sem valor; [4] palavra francesa, lenço usado para a cabeça ou para os ombros; [5] criada ou escrava que ajuda nas tarefas domésticas; [6] zanga passageira, reinação; [7] vergonhoso; [8] quarto; [9] cuidado, insistência; [10] joia que se usa na cabeça, similar a uma tiara; [11] acessórios para vestir e preparar-se para os eventos; [12] Aflição e abatimento; [13] necessário; [14] objeto que prova um compromisso.
***
O enredo em si é o mais trivial possível, igual a seu protagonista: um alfinete foi comprado por uma mucama, por acaso, é ele quem prende uma rosa no vestido de uma moça e, quando está com o futuro noivo, ele é descartado. Mas os artifícios encontrados por Machado para singularizar essa história são de vária ordem.
Inicialmente deve-se observar o modo da sequência narrativa. A primeira frase do conto é a última, dando um tom cíclico, ou seja, o final já é conhecido logo no início (Algo parecido acontece nos inícios de “A cartomante” e de “A causa secreta”). E na sequência, no método machadiano da digressão e conversa com o leitor, o alfinete pede perdão pela sua tentativa de escrita épica e, agora que tem a atenção do leitor, irá contar sua história.
É pela perspectiva do narrador-protagonista que o enredo segue. E o fato de ser um alfinete (tão comum), mas ter ares grandiosos, faz com que se construa as peripécias todas. Começa com um suspiro por ser o alfinete de uma mucama (“Que destino!”), embora reconheça sua sorte de poder ouvir as conversas das moças da casa (“não era um destino principesco, mas também não era um destino ignóbil”). Dessa monotonia inicial, eis que se anuncia a sua aventura, que aos poucos o narrador vai tecendo – apesar de alfinetes não tecerem…
O foco em Clarinha, ao mesmo tempo que tem a função de criar o conflito do conto vai mostrando as trivialidades de uma família da época e dos bailes da corte dos finais do século XIX. Além disso, a relação das moças com Felicidade (com a pontada de ironia que há no nome da mucama) também traça um breve instantâneo da estrutura familiar durante o Império.
E então as duas histórias se unem, quando Felicidade dá o alfinete para prender a rosa. “Um era eu”. Comparando-se a Napoleão Bonaparte, mostra-se como ele se sente subir na vida, indo de um “lenço pobre de uma pobre mucama” até o baile, com todo seu luxo e esplendor, e que ele considerava o “seu lugar”.
Mas a roda da fortuna atinge todos os seres, mesmo os alfinetes, de modo que no clímax do conto, no encontro e promessa de noivado que o Dr. Florêncio dá a Clarinha (interessante o fato do nome da moça encontrar-se no diminutivo, para retratar a familiaridade, ao passo que o noivo possui o status de um título de doutor), com as batidas do coração tão fortes, ocorre a quebra de expectativas e o alfinete é jogado fora e cai no chapéu de um homem qualquer que passava.
Surge então, como encerramento, um segundo sentido para essa “História comum”. Não apenas por tratar-se de um objeto comum, mas também por ser a mesma história que tantas vezes se repete, em tantos contextos diferentes: quem se vê, de repente, cercado de luxo e riquezas, pode perder a tudo de maneira igualmente rápida. E tanto a subida quanto a queda não ocorrem, necessariamente por mérito ou erro próprio. Às vezes são só joguetes que outras mãos levam, põem e atiram fora…
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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