Nos contos de Miguel Torga, escritor português, há personagens repletos de humanidade, todos trabalhados com uma ternura lusitana de ver, no detalhe mínimo, ignorado por todos, uma alma que nasce e brota. Como médico e atuando no interior de Portugal, transitava por várias aldeias da região de Trás-os-Montes. Riba Dal, Galafura, Urros, Celeiroz, Pedralva, Lourosa, todos esses nomes com sabores árabes, latinos, ibéricos e outros temperos imprevistos servem de palco aos habitantes de alma grande desses contos.
No livro Bichos, ele vai criando animais-personagens com sentimentos e pensamentos humanos, indo desde Tenório, o galo, até Farrusco, o Pombo. Mas um dos mais belos contos é “Cega-rega”, uma espécie de revisitação da fábula da Cigarra e da Formiga, em que o narrador busca compreender o ponto-de-vista da cigarra (também chamada de cega-rega), mostrando que, se ela canta, não é porque a vida é fácil, mas sim como forma de celebrar a dura vitória de viver a aventura desse inseto, que nasce em meio à podridão da matéria orgânica e, escalando a árvore, consegue atingir o alto e o sol. Sempre há aqueles que não reconhecem o esforço para chegar, e julgam o cantar alegre como falta de empenho em trabalhar. Mas a vida se impõe, e a felicidade de viver o momento também.
A linguagem de Torga pode, por vezes, parecer complexa (muito por alguma palavra ou pela construção verbal), mas se deve insistir.
Sem mais, vamos a ele:
CEGA-REGA
(Miguel Torga)
É difícil. Isto de começar num monturo[1], e só parar na crista dum castanheiro, tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisálida… Todas as estações do íngreme[2] calvário da organização. Animada pelo sopro da vida, a matéria necessita do calor dum ventre. Antes dessa íntima comunhão, desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural é inexorável[3]. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser. O calor dá no ovo. Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra. Depois… Ah, depois é essa descida ao húmus[4], essa existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada ânsia de claridade é premiada com dois olhos iluminados. Cresce também uma boca onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja…
É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal.
– Já hoje ouvi a cigarra…
– É tempo dela.
Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho andado. Paciência. O teatro do mundo tem palco e bastidores. As palmas da plateia festejam somente os dramas encenados. Que remédio, pois, senão a gente resignar-se e aceitar as sínteses levianas. Nascia do tempo. Muito bem. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos abismos em que se debatera. Protoplasma, lagarta, ninfa… Quase que sentia ainda no corpo as fases da transfiguração. Mas pronto, chegara! Agora era receber o calor do presente, e cantar. Cantar o milagre da anódina[5] e conseguida ascensão. E cantava.
A primavera estava no fim e o estio[6] ia começar. As cerejas pontuavam a veiga[7] de sorrisos vermelhos. As searas[8], gradas[9] de generosidade, aloiravam. Contentes, os ramos relaxavam de vez os músculos crispados, já esquecidos das ventanias do inverno. Havia penugens de esperança em cada ninho. Mas não era a doçura das seivas, a paz vegetal ou animal que saudava. Vencera todos os obstáculos dum árido caminho, sem a ajuda de ninguém. No fim do esforço, nem sequer essa vitória via reconhecida. Por isso, nada devia aos outros, e nada lhes daria, a não ser a beleza daquele hino gratuito.
Ainda no rés-do-chão[10] das metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto miradoiro o berço nativo. E começou a subir, a subir, a subir sempre. Depois, serenamente, olhou. Nesse momento, porém, um raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volúpia. E, da plenitude que a empolgou, ergueu-se a voz de triunfo. Não era a vontade que a fazia vibrar. Era o corpo, possesso de contentamento, que, num espasmo total, estridentemente glorificava a própria perfeição atingida.
– Até azamboa[11] a gente!
O senhor camponês, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar[12] de manhã à noite, queria silêncio à volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma força humana ou desumana a faria calar. Com que razão? Porquê?
Porque a fome era triste, os dias passavam velozes, e urgia ajudar a natureza a ser pródiga? Imaginem!
Pois que aproveitasse as horas, os minutos e os segundos, num anseio insaciável de fartura. Ela continuaria ali, preguiçosa, imprevidente, num desafio sonoro à sensatez.
– Muita alegria tem tal bicho!
– A alegria passa-lhe… É deixar vir o inverno…
A pressurosa[13] formiga! A coitada! Como se trabalhar fosse um destino!
– E temo-lo aí, não tarda muito.
Evidentemente. Mas que lhe importava? A escolha estava feita. Que as folhas do calendário, como as das árvores, fossem caindo, e que os ceifeiros lançassem as gadanhas ao trigo maduro, numa condenação de galerianos[14]. Que nas tulhas[15] se acumulassem toneladas de grão. Ao lado dos celeiros atestados, ficaria um celeiro vazio. Um símbolo de inquebrantável confiança.
– Mas em quê? – perguntava um pardal suspicaz[16].
Outro que não compreendia. Outro que só concebia a existência a saltar de migalha em migalha.
– Chega-lhe, Cega-Rega!
O Poeta! Louvado seja Deus! Até que enfim lhe aparecia um irmão!… Um irmão que sabia também que cantar era acreditar na vida e vencer a morte.
A morte que a espreitava já, com os olhos frios do Outubro…
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[1] monte de matéria orgânica, esterqueira; [2] difícil de subir, trabalhoso; [3] impiedosa, rigorosa; [4] solo composto por matéria orgânica vegetal; [5] que acalma a dor; [6] verão; [7] terra cultivada; [8] campo semeado; [9] bem desenvolvidas; [10] andar térreo; [11] deixa tonta, atordoa; [12] trabalhar muito, como um “mouro”; [13] ativa, impaciente; [14] prisioneiros condenados a remar numa galé, uma embarcação; [15] lugar onde se armazenam grãos; [16] que desconfia
***
Esse conto é uma celebração da transformação e da esperança. Contrariando a moral da fábula de La Fontaine, na qual a cigarra é repreendida por cantar e não acumular comida para o inverno, mostra-se que a luta desse inseto começa no início de sua vida. É “um longo caminho”, com a descoberta de uma conexão maior com algo superior (a “consciência de cosmos”) para que se possa adquirir a compreensão de si próprio (a “consciência de ser”). A cigarra, antes de ser cigarra, ainda em estado de embrião, larva e crisálida, em uma existência sem forma, vence a si e transforma uma “ânsia de claridade” em “olhos iluminados”, além das “asas que o sonho deseja”.
Assim, unindo esses símbolos da transcendência e da vontade, Miguel Torga mostra o caminho até a cigarra subir e cantar. Alguns podem ouvir, mas sem dar muito por isso. O narrador, então, mostra como a arte real acontece nos bastidores, não no palco. E deve se levar em conta todo o esforço e luta que não se vê, na hora final do canto da cigarra (por certo que símbolo para toda ação ou objeto criticado por outros, que não se interessam por saber de onde aquilo veio e como aquilo se fez).
No jogo das estações, nota-se que a cigarra nasce durante a primavera, aproveita o verão em toda a sua beleza, e já se deixa entrever o Outubro, que trará o outono e a ameaça do inverno. E a alegria diante do sol, para a cigarra, é motivo para externalizar o grito crescente. Mas os demais não veem isso como felicidade, mas como incômodo. O senhor camponês, a formiga, para o narrador estão tão focados em sua vida mecânica de trabalhar sem levantar os olhos, talvez até sem consciência do que se faz (“como se trabalhar fosse um destino”). E mesmo o “pardal suspicaz” torna-se símbolo dessa existência limitada de apenas “saltar de migalha em migalha”.
Nenhum desses entende a cigarra, que canta porque o instante existe (como diria Cecília Meireles, em seu “Motivo”). Afinal, o único que entende, o “irmão” da cigarra, aparece como o Poeta. E ambos se apresentam, para Miguel Torga, como as espécies que entendem o valor do canto, da poesia e da arte, que é “acreditar na vida e vencer a morte”, não a física ou da fome, mas a transcendente, espiritual e, afinal é isso que importa, a da humanidade.
Antes do ataque das críticas da formiga, muito mais pautado pelo seu próprio julgamento do que pelo que é realmente, há a necessidade de que se entenda que toda pessoa é para o que nasce. No caso da cigarra, a sua natureza é essa, capaz de vencer as dificuldades e não se importar com as que virão (inverno, fome, morte), pois precisa haver a poesia, a arte, a celebração da vida. Mesmo que a morte ronde, logo além.
E pronto.
por Saulo Gomes Thimóteo
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