Como já visto em postagens anteriores, Guimarães Rosa é um autor que, ao mesmo tempo, exige e encanta. Em suas estórias, ele dá tanta expressividade aos termos, à cena e aos personagens que de uma história banal, ele extrai grandes lances poéticos.
É o que acontece no conto “Sequência”, publicado em Primeiras estórias, que relata a fuga (ou regresso) de uma vaca fujona e de um rapaz que a persegue. O narrador, então, vê nesse ato a eterna busca pelo seu lugar de origem (para a vaca), ao mesmo tempo em que há o caminho do destino desconhecido (para o rapaz). Podem-se sugerir dois percursos possíveis para a leitura: 1) ou se lê primeiro o conto e, depois da interpretação posterior, lê-se uma segunda vez, em que muitas coisas vão aparecer muito mais claras; 2) ou se pula primeiro à interpretação, para depois seguir a jornada bovina. Ou para descobrir as surpresas, ou para ter mais abertos os caminhos, de qualquer forma, deve-se ler.
(Há números nos parágrafos, para auxiliar na leitura e interpretação)
Sem mais, vamos a ele:
SEQUÊNCIA
(João Guimarães Rosa)
- Na estrada das Tabocas, uma vaca viajava. Vinha pelo meio do caminho, como uma criatura cristã. A vaquinha vermelha, a cor grossa e afundada – o tom intenso de azamar[1]. Ela solevava[2] as ancas, no trote balançado e manso, seus cascos no chão batiam poeira. Nem hesitava nas encruzilhadas. Sacudia os chifres, recurvos em coroa, e baixava testa, ao rumo, que reto a trazia, para o rio, e – para lá do rio – a terras de um major Quitério, nos confins do dia, à fazenda do Pãodolhão.
- No Arcanjo, onde a estrada borda o povoado, foi notada, e, vendo que era uma rês fujã, tentaram rebatê-la; se esvencilhou[3], feroz, e foi-se, porém. De beira dos pastos, os anus, que voavam cruzando-a, desvinham[4] de pousar-lhe às costas. No riachinho do Gonçalves, quase findo à míngua d’água, se deteve para beber. Deram tiros, no campo, caçando às codornas. Latidos, noutra parte, faziam-na entrar oculta no cerrado. Ora corriam dela umas mulheres, que andavam buscando lenha. Se encontravacavaleiros, sabia deles se alonjar[5], colada ao tapume, com disfarces: sonsa curvada a pastar, no sofrido simulamento. Légua adiante, entanto, nos Antônios, desabalava em galope, espandongada[6], ao passar por currais, donde ouvia gente e não era ainda o seu termo. Tio Terêncio, o velho, à porta de casa, conversou com o outro: – “Meo fi’o, q’vaca qu’é essa?” – “Nhô pai, e’a n’é nossa, não.” Seguia, certa; por amor, não por acaso.
- Só, assim, a vaquinha se fugira, da Pedra, madrugadamente – entre o primeiro canto dos melros e o terceiro dos galos – o sol saindo à sua frente, num céu quase da sua cor. Fazia parte de um gado, transportado, de boiadeiros, gado de coração ativo. Viera do Pãodolhão – sua querência[7]. Apressava-se nela o empolgo[8] de saudade que adoece o boi sertanejo em terra estranha, cada outubro, no prever os trovões. Apanhara a boca-da-estrada – para os onde caminhos – fronteando o nascente.
- Soada a noticia, seo Rigério, o dono da Pedra, disse: – “Diaba“. Ele era alto, o homem, para tão pequenina coisa. Seus sabedores informavam: que a marca sendo a de grande fazendeiro, da outra banda, distante. Seus vaqueiros, postos, prontos. Esse seo Rigério tinha os filhos diversos, que por em volta se achavam. Nem deles, para o que, havia a necessidade. E vede de que maneira tudo então se passou.
- Só um dos filhos, rapaz, senhor-moço, quis-se, de repente, para aquilo: levar em brio e tomar em conta. Atou o laço na garupa. Disse: – “É uma vaquinha pitanga?” Pôs-se a cavalo. Soubesse o que por lá o botava, se capaz. Saiu à estrada-geral. Ia indo, à espora leve. Ia desconhecidamente. Indo de oeste para leste.
- Já a vaca. O avanço, que levava, não se lhe dava de o bastante. Ante o morro, a passo, breve, nem parava para os capins dos barrancos: arrancava-os, mesmo em marcha, no mesmo surdo insossego[8]. Se subia – cabeceava, num desconjuntado trabalho de si. Se descia – era beira-abismos, patas abertas, se borneando[9]. Após, no plano, trotava. Agora, lá num campal, outras vacas se avistavam. Olhava-as: alteou-se e berrou – o berro encheu a região tristonha. O dia era grande, azul e branco, por cima de matos e poeiras. O sol inteiro.
- Já o rapaz se anorteava[10]. Só via o horizonte e sim. Sabia o de uma vaquinha fugida: que, de alma, marca rumo e faz atalhos – querençosa[11]. Entrequanto, ele perguntava. Davam-lhe novas da arribada. Seu cavalo murça se aplicava, indo noutra forma, ligeiro. Sabia que coisa era o tempo, a involuntária aventura. E esquipava[12]. Ia o longo, longo, longo. Deu patas à fantasia. Ali, escampava. Tempo sem chuvas, terrentas[13] campinas, os tabuleiros tão sujos, campos sem fisionomia. O rapaz ora se cansava. Desde aí, o muito descansou. Do que, após, se atormentava. Apertou.
- Com horas de diferença, a vaquinha providenciava. Aqui alta cerca a parou, foi seguindo-a, beira, beira. Dava num córrego. No córrego a vaquinha entrou, veio vindo, dentro d’água. Três vezes esperta. Até que outra cerca travou-a, ia deixando-a desairada[14]. Volveu – irrompida ida: de um ímpeto então a saltou: num salto que queria ser vôo. Vencia. E além se sumia a vaca vermelha, suspensa em bailado, a cauda oscilando. O inimigo já vinha perto.
- O rapaz, no vão do mundo, assim vocado[15] e ordenado. Ele agora se irritava. Pensou de arrepender caminho, suspender aquilo para mais tarde. Pensou palavra. O estúpido em que se julgava. Desanimadamente, ele, malandante[16], podia tirar atrás. Aonde um animal o levava? O incomeçado, o empatoso, o desnorte[17], o necessário. Voltasse sem ela, passava vergonha. Por que tinha assim tentado? Triste em torno. Só as encostas guardando o florir de árvores esfolhadas: seu roxo-escuro de julho as carobinhas, ipês seu amarelo de agosto. Só via os longes de um quadro. O absurdo ar. Chatos mapas. O céu de se abismar. E indagava o chão, rastreava. Agora, manchava o campo a sombra grande de uma nuvem. O rapaz lançou longe um olhar. De repente, ajustou a mão à testa, e exclamou. Do ponto, descortinou que: aquela. A vaquinha, respoeirando[18]. Aí e lá, tomou-a em vista. O vulto, pé de pessoa, que a cumeada do morro escalava. Ver o que diabo. Reduzida, ocupou, um instante, a lomba linha do espigão[19]. Aí, se afundou para o de lá, e se escondeu de seus olhos. Transcendia ao que se destinava.
- O rapaz, durante e tanto, montado no bom cavalo, à espora avante, galgando[20]. Sempre e agudamente olhava. Podia seguir com os olhos como o rastro se formava. Só perseguia a paisagem. Preparava-se uma vastidão: de manchas cinzas e amarelas. O céu também em amarelo. Pitavam[21] extensões de campo, no virar do sol, das queimadas; altas, mais altas, azuis, as fumaças desmanchavam-se. O rapaz – desdobrada vida – se pensou: – “Seja o que seja“.
- Aí, subia também ao morro, de onde muito se enxergava: antes das portas do longe, as colinas convalares[22] – e um rio, em suas baixadas, em sua várzea empalmeirada[23]. O rio, liso e brilhante, de movimentos invisíveis. Como cortando o mundo em dois, no caminho se atravessava – sem som. Seriam buracos negros, as sombras perto das margens.
- Depois dos destornamentos[24], a vaquinha chegava à beira, às derradeiras canas-bravas. Com roubada rapidez, ia a levantar o desterro. Foi uma mexidinha figura – quase que mal os dois chifres nadando – a vaca vermelha o transpondo, a esse rio, de tardinha; que em setembro. Sob o céu que recebia a noite, e que as fumaças chamava.
- Outrarte[25] o ouro esboço do crepúsculo. O rapaz, o cavalo bom, como vinham, contornando. Antes do rio não viam: as aves, que já ninhavam[26]. A beira, na tardação[27], não queria desastrar-se, de nada; pensava. As pausas, parte por parte. Não ouviu sino de vésperas. Tinha de perder de ganhar? Já que sim e já que não, pensou assim: jamais, jamenos… – o filho de seo Rigério. A fatal perseguição, podia quebrar e quitar-se[28]. Hesitou, se. Por certo não passaria, sem o que ele mesmo não sabia – a oculta, súbita saudade. Passo extremo! Pegou a descalçar as botas. E entrou – de peito feito. Àquelas qüilas águas trans[29] – às braças. Era um rio e seu além. Estava, já, do outro lado.
- – “A vaca?” – e apertava o encalço – à boa espora, à rédea larga. Mas a vaca era uma malícia, precipitava-se o logro. Nisso, anoiteceu. E não é que, seu cavalo, o murça, se sentia – da viagem de pêlo a pêlo: os joelhos bambeava, descaía, quase caía para a frente o cavaleiro.
- Iam-se, na ceguez[30] da noite – à casa da mãe do breu: a vaca, o homem, a vaca – transeuntes, galopando. – “Onde então o Pãodolhão? Cujo dono? Vinha-se a qual destinatário?” Pelas vertentes, distante, e até ao cimo do monte, um campo se incendiava: faíscas – as primeiras estrelas. O andamento. O rapaz: obcego[31]. Sofria como podia, nem podia mais desespero. O arrepio negro das árvores. O mundo entre as estrelas e os grilos. Semiluz[32]: sós estrelas. Onde e aonde? A vaca, essa, sabia: por amor desses lugares.
- Chegava, chegavam. Os pastos da vasta fazenda. A vaca surgia-se na treva. Mugiu, arrancadamente. Remugiu[33] em fim. A um bago de luz, lá, lá. As luzes que pontllhavam, acolá, as janelas da casa, grande. Só era uma luz de entrequanto? A casa de um major Quitério.
- O rapaz e a vaca se entravam pela porteira-mestra dos currais. O rapaz desapeava. Sob o estúrdio atontamento[34], começou a subir a escada. Tanto tinha de explicar.
- Tanto ele era o bem-chegado!
- A uma roda de pessoas. Às quatro moças da casa. A uma delas, a segunda. Era alta, alva, amável. Ela se desescondia[35] dele. Inesperavam-se[36]? O moço compreendeu-se. Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele a ela diria: – “É sua“. Suas duas almas se transformavam? E tudo à sazão[37] do ser. No mundo nem há parvoíces[39]: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se.
- E a vaca – vitória, em seus ondes, por seus passos.
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[1] vermelhão; [2] erguer um tanto; [3] atacou, ao invés de escapar, o contrário de desvencilhou-se; [4] deixavam de ir (des+vinham); [5] afastar-se, ficar longe; [6] desordenada, desmantelada; [7] lugar onde o gado foi criado, ou então, lugar onde nasceu ou morou; [8] entusiasmo (derivado de empolgar); [9] cuidando, medindo os passos; [10] achava norte, encontrava direção; [11] vontade de chegar à sua querência; [12] corria ligeiro, galopava; [13] com muita terra; [14] indignada, embrutecida; [15] chamado, predestinado; [16] que andou tanto e sem sucesso; [17] que mal começou, que está empatado, sem rumo certo; [18] fazendo trilho de poeira; [19] o recorte das montanhas ou dos morros; [20] pulando, saltando distâncias; [21] subiam fumaças, como se alguém fumasse; [22] criando vales; [23] com palmeiras; [24] voltas, desvios; [25] por outro lado; [26] iam para os ninhos; [27] fazer-se tarde; [28] acabar-se, separar-se; [29] através das águas tranquilas (o autor separa e inverte, deixando quilas águas trans); [30] cegueira; [31] tão obcecado que não enxerga mais nada; [32] pouca luz; [33] mugiu novamente; [34] com uma tontura estranha; [35] fingia que tentava se esconder; [36] esperavam-se, mas sem saber que se esperavam; [37] tempo propício e favorável.
***
Os parágrafos se distribuem para dar uma sequência à história, então os fatos se vão sucedendo em ordem de lances, como se fosse um xadrez: primeiro se apresenta o lance da vaca, depois do rapaz.
Os três primeiros parágrafos enfatizam a vaca e seu percurso. Ela sai da fazenda da Pedra (para onde foi vendida) e quer voltar para a sua fazenda de origem, o Pãodolhão, de propriedade do Major Quitério. Nesse percurso, compensa ver cada frase e como é descrita a interação dela com a paisagem, com os bichos, com as pessoas, e perceber como a vaca parece ter consciência de que tem um destino a cumprir, pois “nem hesitava nas encruzilhadas”.
Os parágrafos 4 e 5 dão conta do outro personagem: o filho moço de seo Rigério (proprietário da fazenda da Pedra, e atual dono da “vaca fujã”) decide ir atrás da vaca. Interessante apontar como a situação se pinta como os antigos contos de fadas, com o filho indo em busca da aventura (“E vede de que maneira tudo então se passou”).
Do parágrafo 6 ao 9, dá-se a visão do jogo de xadrez. A vaca é o foco em 6 e 8, o rapaz a persegue em 7 e 9. Chama a atenção a vaquinha subir morros e descer encostas, pular uma cerca “num salto que queria ser voo” e o rapaz dar “patas à fantasia”.
No parágrafo 9 (o meio do conto), o rapaz passa por um processo de crise. Questiona-se se vale a pena tanto esforço atrás de uma vaca, ao mesmo tempo em que, se desistisse, como voltaria sem ela, sofrendo a vergonha de ter falhado? Até que vê (fazendo o gesto clássico de pôr a mão na testa para proteger do sol e enxergar mais longe) a vaca correndo ao longe. Aí se encaminha para o clímax da história: como se dará o encontro dos dois personagens, o perseguidor e a perseguida.
Mas, em 10 e 11, o rapaz perde a vaca de vista (“Perseguia uma paisagem”), vê os campos e um rio, e passa a confiar mais no seu destino, pensando que o que tivesse de acontecer, aconteceria (“Seja o que seja”).
Os parágrafos 12 e 13 são os parágrafos da travessia. Primeiro a vaca, submersa, cruza o rio (“quase que mal os dois chifres nadando”). Depois o rapaz, passa por novo dilema, mas havia nele, simbolicamente, já uma “oculta, súbita saudade”, então descalça as botas e nada o rio, mais o seu cavalo. Vale a pena ressaltar a simbologia de cruzar o rio, pois o rapaz sai do outro lado já modificado. Do mesmo modo, o dia se converte em noite, criando-se essa dupla transformação.
Em 14 e 15, já exaustos o cavalo e o rapaz, nota-se que estão na fazenda do Pãodolhão, e associa-se com o antigo dono da vaca. Se a vaca já se sente em casa (“por amor desses lugares”, o rapaz sente-se em lugar estranho. Mas ambos já estão juntos. Tanto que, no 16, a vaca “surgia-se na treva” e o rapaz vê luzes na casa do major Quitério.
Então, dá-se um protagonismo ao rapaz em 17, ele desapeia de seu cavalo e, mesmo diante da situação de aparecer sem avisar em casa estranha, eis que ele surge como o “bem-chegado”
Finalmente, no parágrafo 19, encerra-se a noção do destino que se costura. Uma das filhas de major Quitério olha o rapaz, e se “desesconde” dele. O rapaz, por sua vez, se “compreende”. Mostra-se, então, que tudo acontece no momento que acontece, do modo como deve acontecer. E amam-se os dois.
A vaca, feliz, está onde deveria, tendo ido por seus próprios passos.
Enfim, como ocorre na literatura de Guimarães Rosa, por entre os jogos verbais, há um carinho e cuidado da grandeza das pequenas ações, e a figura do destino que rege a tudo: as pessoas, a vida e até as vacas.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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