Todo avô e toda avó são depósitos de um conhecimento que escapa aos reles mortais. E todo neto guia-se por esse universo, com possibilidades de deslumbrar-se diante de como é possível saber-se coisas tão diversas, de um outro tempo e de uma outra esfera.
Essa figura, dentro da literatura, vai desde os avós de José Saramago (muito evocados em As pequenas memórias e crônicas como “Carta para Josefa, minha avó” e “O meu avô também”), até Mia Couto com seu “O adiado avô” e Ricardo Araújo Pereira com “Amor e batatas” (análise disponível aqui). Ou ainda a terrível Antonina Vassilievna, a babuschka, a velha do romance O jogador, de Dostoiévski. E sempre se revela que, pelo muito que viveram, os avós têm essa capacidade de fazer enxergar as coisas como são, ou deveriam ser.
Valter Hugo Mãe (cujos conto e análise de “A menina que carregava bocadinhos” podem ser acessados aqui) cria, no conto “As mais belas coisas do mundo”, um verdadeiro ato de evocação e louvor ao seu avô, no processo de descobrir, aprender e encantar que lhe parecia acompanhar todo o tempo.
Sem mais, vamos a ele:
AS MAIS BELAS COISAS DO MUNDO
(Valter Hugo Mãe)
O meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria de ser ainda um mistério e que o importante era seguir procurando. Estar vivo é procurar, explicava. Quase usava lupas e binóculos, mapas e ferramentas de escavação, igual a um detective cheio de trabalho e talentos. Tinha o ar de um caçador de tesouros e, de todo o modo, os seus olhos reluziam de uma riqueza profunda. Percebíamos isso no seu abraço. Eu dizia: dentro do abraço do avô. Porque ele se tornava uma casa inteira e acolhia-nos. Abraçar assim, talvez porque sou magro e ainda pequeno, é para mim um mistério tremendo.
Eu sei que ele queria chamar a atenção para a importância de aprender. Explicava sempre que aprender é mudar de conduta, fazer melhor. Quem sabe melhor e continua a cometer o mesmo erro não aprendeu nada, apenas acedeu[1] à informação. Ele achava que dispomos de informação suficiente para termos uma conduta mais cuidada. Elogiava insistentemente o cuidado. Era um detective de interiores, queria dizer, inspeccionava sobretudo sentimentos. Quando lhe perguntei porquê, ele respondeu que só assim se falava verdadeiramente acerca da felicidade. Para estudar o coração das pessoas é preciso um cuidado cirúrgico. Estava constantemente a pedirme que prestasse atenção. Se prestares atenção vês corações e podes tirar medidas à felicidade. Como se houvesse uma fita métrica para isso.
Propunha que desvendasse adivinhas e dilemas. Propunha que desvendasse labirínticas lógicas. Prometia-me um novo livro ou um caderno com marcadores amarelos e vermelhos, os meus favoritos. Prometia que, se eu descobrisse cada resposta, me daria outro abraço ainda mais apertado e sempre mais amigo. Por melhores que fossem os cadernos, o orgulho que sentia naqueles abraços era a vitória. Comecei por entender que nenhuma vitória me gratificava mais do que descortinar uma resposta e aceder a um abraço. De cada vez que a nossa cabeça resolve um problema aumentamos de tamanho. Podemos chegar a ser gigantes, cheios de lonjuras por dentro, dimensões distintas, países inteiros de ideias e coisas imaginárias.
Eu queria ser sagaz[2], ter perspicácia[3], estar sempre inspirado. O meu avô pedia que não me desiludisse. Quem se desilude morre por dentro. Dizia: é urgente viver encantado. O encanto é a única cura possível para a inevitável tristeza. Havia, às vezes, um momento em que discutíamos a tristeza. Era fundamental sabermos que aconteceria e que implicaria uma força maior.
Um dia, explicou-me, eu passaria a ser capaz de colocar as minhas próprias questões, ofício mais difícil ainda do que procurar respostas. Sozinho, saberia inventar um mistério até para mim mesmo. Como se eu fosse o lado de cá e o lado de lá das coisas. O lado de cá e o lado de lá do mundo. Um cristal com emissão de luz para todos os sentidos.
Aprendi que o dinheiro tem interesse na troca por coisas, mas não todas. De qualquer modo, o meu avô ensinou que não devemos dar tanta atenção ao preço mas ao valor. Ele acreditava que faltava ao mundo mais coisas sem preço devido ao grande valor que tinham. Na verdade, quanto maior o valor mais indecente se torna que sejam vendidas. Aquilo que há de mais valioso deve ser um direito de toda a gente e distribuído por graça e segundo a necessidade.
Aprendi que uma semente aninhada num bocado de algodão húmido pode rebentar num gigantesco pé de feijão. O meu avô dizia que as sementes eram meninos de pedra que nasciam por um bocado de água. Como se fossem pedras com tanta sede que se tornavam capazes de inventar a vida só para poderem beber.
Aprendi que a minha avó ficou doente e precisou de morrer.
Por causa de estar muito doente, a avó precisara de morrer para ficar sossegada. Não lhe poderíamos falar, mas ela seria um património dentro de nós, uma recordação que a saberia manter como viva.
Perguntei se o avô não iria entristecer demasiado. A minha mãe respondeu que sim. Todos sentiríamos uma profunda tristeza. O meu avô disse-me que teríamos de procurar a felicidade daqueles tempos mais difíceis. Se esperarmos, um dia a tristeza dá lugar à celebração. Íamos aprender a celebrar a avó. Mas nunca esperaríamos quietos. A quietude é uma cerimónia do pensamento, mas logo é fundamental bulir[4]. Fazer qualquer coisa.
Passeávamos a repetir os nomes do que havia no caminho. Como se chamava cada árvore e cada pássaro, como se distinguiam as tantas flores no jardim da nossa vizinha solteira. A vizinha cuidava das flores à espera que o bom perfume da vida lhe trouxesse o amor. Gostávamos muito dela. O meu avô reparava em como ela escolhia sempre pelo coração. Tinha uma inteligência apenas amorosa. Podia dar muito erro para as ciências, mas haveria de garantir-lhe a felicidade quando um rapaz casadoiro a descobrisse.
Nesse tempo, o meu avô perguntou-me quais seriam as coisas mais belas do mundo. Eu não soube o que dizer. Pensei que poderiam ser o fim do sol, o mar, a rebentação no inverno, a muita chuva, o comportamento dos cristais, a cara das mulheres, o circo, os cães e os lobos, as casas com chaminés. Ele sorriu e quis saber se não haviam de ser a amizade, o amor, a honestidade e a generosidade, o ser-se fiel, educado, o ter-se respeito por cada pessoa. Ponderou se o mais belo do mundo não seria fazer-se o que se sabe e pode para que a vida de todos seja melhor.
Pasmei diante do seu conceito de beleza.
Ele incluía os modos de ser, esses ingredientes complexos que compõem a receita do carácter ou da personalidade, a maneira um pouco inexplicável como somos e sentimos tudo.
Convenci-me de que as coisas mais belas do mundo se punham como os mais profundos e urgentes mistérios. Eram grandemente invisíveis e funcionavam por sinais dúbios que nos enganavam, devido à vergonha ou à matreirice[5]. O que sentem as pessoas é quase sempre mascarado. Deve ser como colocarem um pano sobre a beleza, para que não se suje ou não se roube, para que não se gaste ou não se canse.
A beleza, compreendi, é substancialmente o pensamento, aquilo que inteligentemente aprendemos a pensar. A força do pensamento haverá de criar coisas incríveis, científicas, intuitivas, maravilhosas, profundas, necessárias, movedoras, salvadoras, deslumbrantes ou amigas. Pensar é como fazer.
Para a beleza é imperioso acreditar. Quem não acredita não está preparado para ser melhor do que já é. Até para ver a realidade é importante acreditar. A minha mãe disse que eu virei um sonhador. Para mudar o mundo, sei bem, é preciso sonhar acordado. Apenas os que desistiram guardam o sonho para o tempo de dormir.
Quando fiz dez anos de idade o meu avô precisou de morrer. O meu pai levou-me a passear e a pensar. Fomos pensar. Como se fôssemos dar nomes aos pássaros e às árvores, ver as flores da vizinha e distinguir até a composição das pedras. Mas isso já aprendera e não haveria de esquecer. Eu disse: talvez não tenha aprendido nada porque me custa mudar de conduta, só me apetece chorar, pai.
O meu pai respondeu que o avô estivera sempre feliz comigo, mas envelhecera muito, cansara-se, morrer era só como deixar-se sossegar.
Eu senti que o seu sossego era do tamanho da nossa solidão.
Depois, acrescentei: há uma felicidade para os tempos difíceis. Sei que é importante seguir à sua procura. Não estou seguro de ter entendido a beleza, mas prestarei atenção com todo o cuidado. Jurei acreditar. Acreditei sempre, mesmo antes de saber o quanto.
Puseram o meu avô debaixo de flores como se fosse solteiro e esperasse pelo amor.
Senti ter ficado do lado de fora do abraço, como se a casa tivesse ido embora com um temporal e me pusesse irremediavelmente desabrigado. Eu pensei: fora do abraço do avô.
Levei desenhos para lhe contar uma história pequena. Desenhei o meu avô passeando, depois, sentado ao pé do riacho e também de braço levantado a tentar servir de árvore para um pintassilgo. Desenhei o meu avô a ler livros em voz alta e a repetir que a sopa é redonda como o sol e ilumina a nossa fome. Desenhei-nos a rir. E desenhei o seu abraço. Pensei: dentro do coração há sempre um abraço. Passei a viver sobretudo dentro do coração, como numa casa que não pode ir-se embora.
Eu entendi que o meu avô era como todas as mais belas coisas do mundo juntas numa só. E entendi que fazer-lhe justiça era acreditar que, um dia, alguém poderia reconhecer a sua influência em mim e, talvez, considerar de mim algo semelhante. Com maior erro ou virtude, eu prometi tentar.
À noite, deito-me como uma semente na almofada húmida do coração. Fico aninhado com a esperança de crescer esplendorosamente por dentro do amor. No verdadeiro amor tudo é para sempre vivo. E sei que, como as pedras, vivo da sede. Quero sempre inventar a vida.
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[1] ter acesso a; [2] astuto; [3] facilidade de compreensão; [4] mexer, movimentar, agitar; [5] manha, malandragem
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Há-de se ler textos desses, que revelam a humanidade por trás de uma existência. A estrutura desse conto funciona a partir do princípio da rememoração de fatos ou impressões, não necessariamente ordenadas e cronológicas, mas que vão seguindo numa cadência de dar a conhecer esse personagem: o avô.
Assemelha-se a Alberto Caeiro (heterônimo do Fernando Pessoa que, como esse avô, queria continuamente sentir-se aberto para a eterna novidade do mundo) e, pela voz do narrador-neto, vão-se apresentando várias ações e símbolos do afeto e do “deslumbrar-se”: há o abraço, há a semente com a água, há as flores, há o sonho. Tudo isso se vai orientando no sentido de aprender e inspirar-se, ou seja, manter a curiosidade diante das coisas, antevendo que existe uma beleza escondida, que não se entrega de pronto, mas que deseja ser revelada. Essa é a inteligência amorosa, combustível desse avô, transmitido a esse neto.
Ao surgir a questão da morte, duas ações se processam. Na primeira morte (a da avó), o avô revela que o caminho para passar da tristeza para a alegria é a celebração, o enaltecimento da avó, tornando-a parte de si. E isso é possível pela ação, por não se deixar quieto. Na segunda morte (a do próprio avô), o pai do narrador se torna o interlocutor, um mediador para auxiliar na compreensão dessa nova tristeza, como novo caminho para a felicidade.
O abraço sentido pelo neto, que se assemelhava a uma casa que o envolvia, passa a existir dentro dele mesmo. Ele deseja tornar-se o próprio avô, ou melhor, absorver em si o que de melhor havia no modo de ser do avô. Tornar-se semelhante, garantir a influência e levá-lo consigo. Sempre.
Pois os avós, mesmo quando morrem, nunca morrem.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
4 Comments
Lindo conto! Gostei de sua análise. Parabéns!
Muito lindo o texto e bem comovente e nos chama a atenção.
Amei este texto. Sou vó e fico emocionada.
Obrigado!