Em tempos de intolerância, gritos engolindo argumentos e as diversas impossibilidades de diálogo, é importante um momento de pausa e de tentativa de entendimento do que somos, como indivíduo, como grupo. Cada poeta, dentro do seu próprio contexto histórico, deseja ser voz de algo para além de si. Alguns cantam a coletividade do seu povo e de sua história, como Camões e Euclides da Cunha. Outros, cantam o amor interno projetado em amor literário, como Camões e Florbela Espanca. Outros criam obras de grande engenho e arquitetura, pelo jogo de palavras e linguagens, como Camões e Olavo Bilac. (Sim, Camões está em tudo, mesmo quando não está).
Nesse sentido, antes de punhos fechados em ira, invoca-se aqui a busca de Carlos Drummond de Andrade pela compreensão de sua “missão” (se é que há uma) e de seu trabalho (que é um, sendo muitos). Em “Mãos dadas” (publicado em Sentimento do mundo, em 1940), há uma tentativa de autodefinição, tanto pela negativa, quanto pela afirmação, e é no equilíbrio entre ambas que se revela a função da arte, do artista e do homem que pensa e sente.
Sem mais, vamos a ele:
MÃOS DADAS
(Carlos Drummond de Andrade)
Não serei o poeta de um mundo caduco
Também não cantarei o mundo futuro
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade
O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história
Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida
Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes
A vida presente
***
O poema é curto, mas o caminho é longo.
Todo ele se constrói em negações (voltadas a si) e constatações (apreendidas dos outros). As duas estrofes, numa visão um pouco ligeira, poderiam se distribuir em: poeta sobre o mundo; poeta sobre si mesmo. Mas claro que o poeta estará no mundo, e o mundo estará no poeta…
Logo no início, nos dois primeiros versos, há uma limitação temporal: o poeta não se voltará ao tempo já passado, nostálgico e enganoso (“mundo caduco”), nem a um “mundo futuro”, igualmente enganoso e utópico. Como se estivesse entre duas miragens distantes e sedutoras, o poeta desvia-se e mantém-se “preso à vida”, ao agora diante dos companheiros.
Essas pessoas todas, como ele, indivíduos no mundo, “estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”. O olhar do poeta para eles obedece a um movimento exterior e interior: por fora, vê-os tristes, fechados, recolhidos; mas sente que, por dentro, cada um conserva ainda uma esperança possível.
Para tentar resolver essa dualidade e, além disso, enfrentar a realidade (enorme) e o presente (grande), Drummond só vê uma saída: não nos afastarmos e irmos de mãos dadas. O título então se revela, precisamente no verso do meio do poema, tornando-se o ponto central do olhar do poeta. É preciso ir de mãos dadas, unidos, para que haja esperanças.
A segunda estrofe, por sua vez, desloca-se para uma forma de metalinguagem, isto é, sobre o que o poeta escreveria. Por certo que isso é feito com muito mais espaço em “Procura da poesia” (que deve ser lido!), mas aqui, pelo “Não” contínuo que inicia boa parte dos versos, Drummond prepara justamente o que fará.
Todas as ações decorrentes do “Não” mostram-se como fugas. Cantar uma mulher ou uma história, os suspiros ou as paisagens imóveis da janela são temas poéticos que se esquivam de encarar o mundo. A mulher será a musa elevada, a história será de um passado ou de uma imaginação, os suspiros terminam em si mesmos e as paisagens apenas revelam o mundo lá fora, sem envolvimento. Os entorpecentes são meios de sair da realidade, ao menos por instantes, e as cartas de suicida sugerem essa súbita ruptura com a vida. A poesia pode ser isso, desejo de fuga, mas isso, para o poeta, não resolveria nada. Seria tão útil quanto fugir para “as ilhas” (como isolamento físico) ou esperar que “serafins” o raptassem (e levassem para onde?).
Por isso que, buscando aproximar-se daqueles que o acompanham, define sobre o que falará e agirá: o tempo. Havendo aqui uma série de conjunções, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Assim, o tempo, os homens e a vida são as coisas que realmente importam.
O poeta quer isto: as mãos dadas com todos, não para viver numa realidade paralela e ilusória, mas sim para levantar as esperanças, encarar a realidade e impulsionar o tempo presente e a vida presente.
Os leitores também devem querer isso. Saber que cada leitura age diretamente sobre si e, a partir disso, alguma coisa se deve modificar. Saber, também, que um livro não tem qualquer poder sobre o mundo. Mas as pessoas que leem, essas têm muito. Especialmente quando vão de mãos dadas.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimoteo
3 Comments
[…] Para o professor de literatura Saulo Gomes Thimóteo, o poeta queria “as mãos dadas com todos, não para viver numa realidade paralela e ilusória, mas sim para levantar as esperanças, encarar a realidade e impulsionar o tempo presente e a vida presente.” […]
Que coisa linda a poesia! Que coisa linda “as coisas” do poeta que com sensibilidade e delicada emoção , às vezes dolorosa, nos conduz à reflexão de nossas próprias vidas!
Eu como poeta, se me permite me nomear assim, Hoje escrevi algo, conduzido pela minha aguçada sensibilidade e pelo dom prazeroso do uso das palavras.
Enviei para um amigo e ele me respondeu: Parabéns! Se parece muito com o realismo de Carlos Drummond de Andrade! Me senti lisonjeado! Eu que tenho lido pouco esse grande poeta!
Então ele me enviou essa adorável página! O que me incitou a compartilhar meu escrito de hoje.
Diz assim:
E nasceu em mim, a figura de um cavalo atávico, pisando em estrelas coloridas num chão imaginário e único como numa fantasia de verão, no fim de uma sessão de terapia!
E através dele me vi como um velho mascarado de novo, que aos poucos perdeu o medo de ser.
Às vezes um caçador que acaba caçado, numa ingenuidade tola de juventudes passadas!
Essa caçada eterna de amor e afeto numa cidade que muito beira a selvageria.
E o que me salva, não são anjos invisíveis, e sim, a vontade de seguir.
Gosto de fantasiar meus caminhos sem terapia! Como andar numa corda bamba de olhos fechados, sem mesmo temer a queda!
E o meu espírito se transforma repentinamente num sopro livre, de quem vai, sem voltar!
(Salatico, 11/2/2025 no metrô Brasília)
Longe de ser um Drumond, fiquei contente com o escrito!
Parabéns!