Todo escritor é uma espécie de mágico. Nos seus truques, joga com as palavras e leva o leitor a ver uma coisa, enquanto esconde outra que, de súbito, revela. Da mesma forma, pondo os seus personagens em história, cria um mundo que parece se prolongar para além das palavras, quase como se tais seres adquirissem vida própria.
É o que faz o escritor português Fialho de Almeida. Em O país das uvas, vai apresentando cenas e histórias das pessoas das aldeias, com suas pequenas misérias, suas lutas internas e externas e sua grande humanidade. Tudo isso, transmitindo a sensação ao leitor de ver narrativas bem contadas. No conto abaixo, “A velha”, o narrador nos une à personagem-título, de tal forma que vamos com ela sentindo a ingratidão do filho, a neve que cai e a surpresa ao final…
Sem mais, vamos a ele:
A VELHA
(Fialho de Almeida)
Entretanto, os senhores ficam avisados de que esta história é um pouco triste. Era uma velha que vivia em companhia do filho, numa aldeia da Bairrada, lá para as bandas do Luso[1]. E o filho era casado. A mulher dele não gostava da sogra, como é de uso, e zus duma banda, zus doutra, lá vinha sempre a assanhada da moça meter-se com a pobre da velha, que tudo ouvia, coitadinha sem jamais retrucar uma palavra. O seu coração golfava amargura e tormentos, por vezes, naquela cabana de campônios[2], onde as inércias da doença e a invalidez dos anos, quase lhe não deixavam mexer palha, da lareira para o quintal, e do quintal para a lareira.
Por mais que ela se encolhesse nas estamenhas[3] velhas do seu trajo, por menor que fosse a bucha[4] arrancada à broa de milho, durante as refeições, sempre o seu vulto estorvava os outros na cabana, e sempre à volta da banca, sorvidas gulosamente as últimas colheres de caldo verde, alguém ficava com ciúmes do que a velha ia mastigando, com os seis trôpegos dentes que ainda restavam na sua boca murcha de não rir há muito tempo.
Uma noite, era por dezembro, no sopé[5] do Caramulo, e à vista da Serra da Estrela, sempre neve, por dezembro! — uma noite, à hora da ceia, os ódios da nora arreganharam mais vivos contra a velha as suas dentuças peçonhentas. Ela ouviu, ouviu… Mas daquela vez fora medonho. Deixou cair a colher no fundo da malga[6] em que comia, e lentamente pôs-se a erguer por sobre os ombros, à guisa de capote, a saia de estamenha que trazia vestida. E só passado um instante ela disse, em voz mui baixa, tartamudeada pela emoção:
– Se vos faço estorvo na casa, digam-no vocês, que me vou já, sem mais aquelas.
E alongava a pobre cabeça branca, a fim de não perder uma palavra do que sem dúvida seu filho iria responder. Mas o filho da velha, filho único, deixara-se ficar calado, com os olhos no fundo da sua tigela, e triturando nos gumes dos incisivos, restos de côdeas[7] esquecidas sobre a mesa. E a desgraçada embalde punha no casal a angústia dos seus olhos extintos!
Uns poucos de segundos passaram ainda, dentro dos quais não se ouvia senão o tic-tac seco, monótono, escarninho quase, do velho relógio suspenso na parede, por cima duma grande arca de castanho.
Eu bem dizia: é um poucochinho triste a historieta. Seguidamente a nora ergueu-se. E ao entrar na casa dos bois, com o alguidar vazio das sopas da ceia, virou-se, e disse:
– Já vossemecê sabe que ninguém Ihe acudirá. Que abale ou fique, pouco se nos dá.
E aquele filho calado, enrolando um cigarro, da outra banda da mesa, sem olhar para as fundas rugas da sua miséria e da sua idade! Então a pobre mulher pôs-se de pé, desenferrujando as juntas para se dispor a caminhar. Tirou da arca meia dúzia de trapos que lá tinha. E turbados de lágrimas, os seus olhos contemplam a casinhola onde tinha passado a vida toda, desde o nascer, dia por dia, a casa que seu pai Ihe dera por legítima, e com que ela presenteara o filho, toda contente, no dia em que o vil se tinha ido casar.
Da arribana[8] então quis-lhe parecer que a nora resmungava:
– E não se despacha, a seresma[9]!
Abriu docemente a porta do casebre, e foi-se embora. Que tormenta de neve cai lá fora, Nossa Senhora de Mortágua! Já todo esse campo está de camisa nova vestida, e muito branca… da lua escorrem luzeiros opados[10], cor de pérola, cor de cinza, através do nevão que está caindo. E uma lufada[11] de flocos parece que teima em empurrar a veIhota para dentro da casa, como quem aconselha se abrigue.
– Deixa-me, deixa-me, granizo estuporado! responde tragicamente a pobre expulsa, como se falasse à lufada: tu não mandas coisa alguma ali dentro da casa. E o seu dono deu-me a saber que eu estava de sobejo[12], entre os que lá vivem, estuporado granizo!
Aí vai ela, aí vai, trôpego corcovada, através da fantástica noite de neve, lutando contra o frio, lutando contra as maravalhas[13] de gelo que se lhe derretem na cara, e sobre as mãos encarquilhadas.
As suas forças esgotam-se, ergue os olhos a Deus, e um vago terror se Ihe apodera do espírito, naquela solidão sinistra do caminho. Dentro de pouco ela já nem poderá afastar da cara os brancos flocos que lhe causticam as rugas, por tal forma tem as mãos entorpecidas. Uma lassidão[14] traiçoeira começa a invadi-la, dos pés aos quadris, e da ponta dos dedos aos extremos superiores do antebraço. Reza uma Salve Rainha a Nossa Senhora da Mortágua. Irá levar-lhe para a lâmpada uma almotolia[15] de azeite novo se viver. Mas quando? quando? Em solteira, ia ela, no carro de bois, pela romaria de agosto, até ao monte que ensombra a vila, com o pai, e os irmãos, e os parentes, de chapéu novo, lenço de seda, e tamancos de polimento, mais ricos, com seu tacão encarnado. Cada qual depois fora morrendo, um agora, outro ao depois. . . terras vendidas, filhas casadas… e agora expulsa de casa, e tão pertinho já da sepultura!
– Não lhes dizia eu que era uma historieta um pouco triste?
Uma lassidão traiçoeira começava a invadi-la, e vai subindo. Há um momento em que ela já não pode. . . Salve Rainha, mãe de misericórdia. . . Oh! como a cabeça anda à roda! Nossa Senhora de Mort… e acocora-se na vereda, a pobre velha, crispado de pés e pernas… Vida de doçura, esperança nossa… E cai para o lado, fechando os olhos, numa suprema agonia. Triste, um pouco triste, a historieta.
Desperta ao calor dum lume crepitante[16] – é uma casa já velha, muito pobre – e um velho esperta a fogueira com ramos de pinho seco, que vai parando e deitando. O velho tem-se aproximado, risonho, carinhoso.
– Eh lá! tia mulher!
Ela só vagamente percebe as suas vozes de aconchego.
– Eh lá! repete o homenzinho.
Já os seus olhos o fitam com mais concentrada solicitude.
– Eh, mana mulher!
Então a vagabunda[17] conhece-o. Aí o moleiro do Pego, que a requestara em cachopa[18], e na romaria de agosto, em Mortágua, lhe arrancara a confissão dum amor, que a leviana, mais tarde… Raparigas! Raparigas![19] Tinha jurado esta não casar com outro, à hora dele partir para soldado. E encontrara-a casada, ao voltar, o pobre diabo!
A velha não diz nada, passaram cinquenta anos: e uma grande comoção a agita, e envolve, e entorpece. Vai fazer um esforço para se erguer do canto – é melhor, a fim de começar a sua peregrinagem por esses montes, sob a neve, até que as matilhas de lobos Ihe arremetam. Aventura-se a dizer, como ele a encara:
– Mas que hei de eu ficar aqui fazendo?
– O que fazem pessoas da nossa idade, mana mulher. Pouca coisa. Descansar.
– Dirão de nós que dormimos.
– E isso que tem, nesta idade? O último a morrer fechará os olhos do primeiro que se tiver ido. Deixe-se ficar aqui. É como se a minha mana voltasse, graças a Deus, do outro mundo.
Ela reparava, cismando, nas carantonhas que a cinza esquissava[20], de capricho, por sobre o vermelho fulvo do brasido. E por esse campo, a tormenta de neve não cessava de cair.
Pouco depois contava-lhe ele a sua vida. Era uma tranquila história de trabalho, pouco batalhada contra a miséria, mas com raros solavancos de alegria também; uma pachorrenta história de três figuras, moinho, moleiro e burro, vivendo todos três na santa paz de Nos’Senhor. Mas o que ela sofrera, a pobre velha! O que ela tinha sofrido desde o casamento!
– Pra lhe falar ensinado, fez o moleiro, nada me espanta da sua pouca fortuna. Vosmecê foi como as outras mulheres, alma penada por homem, e sem paciência de aguardar a fortuna, quando lhe picou o sangue na guelra, como o peixe. Ah, não há meio, tornava ele, não há meio de as fazer ter paciência! Em a tal coisa Ihes subindo à garganta, hão de casar por força, vocês. Receba agora o mau pago de não ter querido aguardar o pobre tarimbeiro. – É castigo de Deus! tornava ele, e a velha abanava a cabeça em sinal de afirmação.
– Pois fique, fique, dizia o moleiro chegando para ela o seu rude escabelo[21] de pinho. Por acaso tem medo às línguas más? O mundo que poderá dizer, se o nosso tempo já passou? Muita vez me ponho a considerar nos que casam, para que o mundo não tenha fim. Aí se carregam eles de filhos, que têm obrigação de sustentar e trazer agasalhados. E os filhos crescem, à medida que os pais se vão alcachinando[22] de velhice.
Por fim estão fortes, trabalham, casam-se os rapazes… Raio de vida, ali a um canto da cozinha, os velhos pais já não fazem senão dormir e comer. Esta vida ociosa aborrece em casa de gente pobre. É um desaforo, urna pouca vergonha… Queixa-se a nora do pão que lhe escasseia no tabuleiro? Pudera não! Os velhos não fazem senão comer. Há uma contenda à lareira? Se os velhos são uns intrigantes! Rico vai o ano de Deus, a seara folhuda e bem lançada, a vinha rija, e tão viçoso o couval! Que vinténs nós pouparíamos, marido, ao canto da arca, se teu pai nos não pesasse tanto, o estupor ruim! – Dirás se eu tenho razão, mana mulher, dirás se eu tenho razão, dizia o velho. E a velha abanava a cabeça, deixando as suas lágrimas correr a quatro e quatro.
– Ainda bem que eu fiquei solteiro, por me haveres faltado ao Juramento. Teriam vindo os filhos, miséria na casa, moinho vendido para os criar. .. e depois de crescidos, vai-te lá para o esterco, estafermo podre, diria essa canalha de ingratos! Mas padecera também de isolamento. Todos sofremos, desta maneira ou daqueloutra. Já tu eras casada, punha-me a figurar, por desfastio, está de ver, a minha vida contigo, no moinho, com um bom jantar ao canto do fogo, abóboras a curtir no telhado do alpendre, e três ou quatro porcos no chiqueiro, para a fartura do ano. Dava-me aquilo um bem-estar! Hoje que estás aí, parece que o meu sonho foi certo, e que esta noite vem continuada de muitas que temos passado a aquecer-nos do frio, por baixo da mesma chaminé, como casados.
A velha entreabria um riso vago, naqueles seus beiços, murchos de não rirem há muito tempo. Oh, como a vida tem minutos serenos! E ele lhe tomava as mãos pergaminhosas[23], nas suas mãos com dedos cobertos de nós e calos, para evocar junto dos seus brancos cabelos, juventude, alegria – que sei eu! – promessas, ramagens, fatos novos… Através daquelas reminiscências, a velha ia percorrendo assim paisagens desvanecidas, cenas de outrora, idílicas[24] e frescas, todo um passado flutuante entre saudades, e tão longe, Senhora de Mortágua, tão longe!… E as mãos se corram entre as mãos pergaminhosas, e sorri a velha com o seu triste rosto encarquilhado.
– Houve um tempo, vai ela a dizer. Houve um tempo.. .
A mesma doce melancolia inclina a face aos dois, para uma carícia que nem sequer se chega a esboçar, pois eles calam-se a ouvir dentro do peito os corações reverdecidos[23]… Ia jurar que o vento cessa: só a neve continua polvilhando os braços das árvores com uma primavera fantástica de floritas, menos brancas que a pureza daquele amor, sagrado quase. Eu bem dizia aos senhores – esta história é um pouco triste.
—
[1] região central de Portugal; [2] camponeses; [3] tecido grosseiro de lã; [4] pedaço; [5] base da montanha; [6] recipiente para tomar sopa; [7] crosta do pão; [8] cabana do gado; [9] mulher preguiçosa e sem serventia; [10] grossos clarões; [11] sopro forte; [12] sobrando; [13] flocos; [14] cansaço; [15] vasilha para azeite; [16] fogueira que estalava; [17] que andava sem rumo; [18] namorava quando moça; [19] moças, feminino de rapaz; [20] esboçava; [21] banco; [22] encurvando; [23] semelhante ao pergaminho; [24] sonho, utopia, conectado à natureza serena.
***
Nesse pequeno universo do interior de Portugal, notam-se diversas relações humanas. Há o eterno choque de gerações, há a passagem do tempo e a sensação de não viver, há a saudade daquilo que nunca foi. E na personagem também se encontram os conflitos internos do indivíduo. A ingratidão, o orgulho, a busca, o desespero, o receio, a paz.
A velha, então, desenhada pelo narrador com seus “seis trôpegos dentes que ainda restavam na sua boca murcha de não rir há muito tempo”, mostra-se como dualidade entre não servir para nada em um lugar onde tudo lhe deviam (ou, pelo menos, respeito), e encontrar abrigo em um lugar no qual nada contribuiu. É interessante os três momentos pelos quais a velha transita e no redimensionamento por que passa: principia sendo um estorvo, reduzindo-se, até o momento em que se levanta, “alonga a cabeça”, como à espera de um momento de virada – que não vem; após, peregrina sem rumo, vai buscando forças dentro de si, mantendo-se viva por sua fé e por uma vontade de viver – que se vai minguando; por fim, reaquecida em uma lareira do antigo namorado desprezado, que vai apontando as falhas e as más venturas que ela mesma buscou, mas que a esperou em sonho por cinquenta anos, descobre-se rejuvenescida, renascida e dotada de um amor calmo – que se eleva.
Costurando tudo isso, há o narrador, que vai anunciando por diversas vezes essa história “um pouco triste”, e que cria o desfecho de que chegamos à felicidade, mesmo que pontuada por tristezas. Além disso, também vai contrapondo à imagem do “nosso tempo já passou”, representada na primeira casa, da qual é expulsa, a imagem do “nosso tempo é o agora, amparado nas recordações”, presente na segunda casa e no toque das mãos pergaminhosas. E conectando ambas as casas, há o processo de transformação, representado pelo caminhar na neve, vencendo a si mesma, no processo de travessia, necessário para livrar-se da antiga vida e preparar-se para a nova fase.
Sim, a história é triste. Olha-se para a velha com um misto de ternura e pena, vê-se a nora com aversão, quer-se gritar com o filho ingrato. Fica mais triste com a caminhada sofrida na neve, como se perder-se na noite escura fosse o destino de todos aqueles cujo “tempo já passou”. Mas perde a carga de tristeza ao final, especialmente com os últimos parágrafos, nos quais as mãos se entrelaçam e uma carícia vinda da alma e de outros tempos sela e consagra aquela velha, por fim encontrada e em seu lugar devido.
E pronto!
por Saulo Gomes Thimóteo
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